sábado, agosto 27, 2011

Um colossal embuste

Não há segundas oportunidades para causar uma boa primeira impressão, usa-se dizer. Dois meses passados, já é possível formar uma primeira impressão do novo Governo. Esta resulta não tanto do que fez, mas antes do que prometeu fazer e manifestamente não fez.
É verdade que temos um extenso histórico de governos que ganharam eleições prometendo uma coisa para no poder fazerem o contrário. Ainda assim, há uma diferença significativa entre violar compromissos de campanha e deitar fora toda a narrativa política que foi usada para vencer eleições. Este Governo já renunciou ao essencial do que prometeu durante mais de um ano.
Passos Coelho não se cansou de apresentar a sua fórmula mágica para resolver os desequilíbrios das contas públicas – a consolidação seria feita 2/3 do lado da despesa e 1/3 do lado da receita –, enquanto repetia que os cortes seriam indolores, pois não implicariam mais sacrifícios para os portugueses ao assentarem nas gorduras do Estado. Um módico de realismo bastava para concluir que a fórmula só por arte mágica era aplicável e que a superação dos nossos desequilíbrios teria necessariamente de ter consequências económicas e sociais.
Dois meses passados, só restam duas hipóteses para explicar a diferença entre o que Passos Coelho candidato disse e o que tem feito enquanto primeiro-ministro: ou estávamos perante um colossal embuste ou um problema sério de dissonância com a realidade. Convenhamos que não é fácil perceber qual das duas hipóteses é verdadeira. O governo tem dados sinais contraditórios.
A entrevista do Ministro das Finanças à TVI indicia que tudo o que nos foi sendo dito não era para ser levado a sério. Em vinte minutos, Vítor Gaspar, em alguns momentos com enorme candura, encarregou-se de renunciar a toda a narrativa política do PSD/CDS e não se cansou de sublinhar que os vários documentos de execução orçamental são “extraordinariamente exigentes do lado da receita e do lado da despesa”. Tendo em conta que foi o PECIV que provocou eleições, não deixa de ser irónico ver o Ministro das Finanças a defendê-lo como nem Sócrates, nem Teixeira dos Santos ousavam fazer. Pode dar-se o caso de, com benefício para a sanidade mental do próprio, Vítor Gaspar não ter acompanhado a política portuguesa no último par de anos, mas, de facto, expôs o colossal embuste em que assentou a vitória eleitoral de Passos Coelho.
Há, contudo, momentos em que somos levados a crer que o primeiro-ministro e a sua entourage mais próxima acreditavam no que anunciavam. O “murro no estômago” que se seguiu ao corte no rating ou a total incapacidade do Governo em posicionar-se sobre os desenvolvimentos políticos na Europa sugerem que há quem continue a crer que estávamos perante uma crise nacional e que a remoção de Sócrates e uma vontade indómita de atacar o propalado despesismo chegariam para sairmos do buraco em que nos encontramos.
Convenhamos que, entre estarmos face a um grupo de crédulos ou a alguém que renunciou à realidade para vencer eleições, é preferível que a segunda hipótese seja a verdadeira.
publicado no Expresso de 27 de Agosto

sábado, agosto 20, 2011

Portem-se bem

Inspirado pela violência urbana em Londres e pelo espectro de instabilidade social que tem acompanhado a austeridade grega, Passos Coelho, no discurso do Pontal, apelou aos parceiros sociais para que não seguissem “o caminho da conflitualidade” pois “o mundo tem os olhos postos em nós”. No fundo, o primeiro-ministro está a reconhecer que os sindicatos têm um papel fulcral no controlo da conflitualidade. Mas, convenhamos, a função do movimento sindical não é propriamente a de guardião da paz social.
A ideia tem, contudo, ecos profundos. Entre nós, ao longo do século XX, o movimento sindical de inspiração comunista anulou, com mão de ferro, qualquer veleidade anarco-sindicalista. Este facto, ao mesmo tempo que nos afasta do padrão de insurgência urbana que caracteriza, por exemplo, a Grécia, teve consequências bem negativas. Enquanto a cedência do PCP à democracia representativa serviu para institucionalizar no parlamento a conflitualidade política, a CGTP foi fazendo o mesmo para a conflitualidade social e laboral. O preço a pagar foi a aceitação de que, no diálogo político e social, Portugal teria dois “corpos” escassamente disponíveis para as soluções políticas e para a concertação. No fundo, o trade-off do contrato não escrito entre poder político e movimento sindical português era simples: “vocês controlam as massas, mas não contamos convosco para quase mais nada”.
Faz, por isso, sentido o apelo de Passos Coelho, mas estamos perante uma profecia que, enquanto se auto-realiza, terá efeitos negativos. Depois de com o Governo Sócrates termos tido um período em que importantes acordos na concertação coexistiam com uma retórica que via em alguns sindicatos uma excrescência pré-moderna, recuperamos, agora, a figura do “sindicato polícia”. Ambas as visões políticas cristalizam o papel do movimento sindical, ora como organização conservadora, indisponível para o diálogo, ora como esfera de controlo social, incapaz de lidar com os outsiders.
Estas concepções têm consequências: não só não dão nenhum contributo sustentável para a paz social, como não fazem dos sindicatos parceiros para os ajustamentos que Portugal precisa de fazer.
A paz social, em particular em contextos de austeridade, tem naturalmente de envolver os sindicatos, mas, no essencial, depende de maior equidade na distribuição dos sacrifícios. A este propósito, vale a pena tomar atenção ao que Nouriel Roubini disse, esta semana, em entrevista ao Wall Street Journal. Ao mesmo tempo que chamava a atenção para o processo em curso de auto-destruição do capitalismo, o economista que “previu” crise do sub-prime, sublinhava que estamos a assistir a uma redistribuição maciça do trabalho para o capital, dos salários para os lucros, o que tem gerado aumento da desigualdade de rendimentos.
Se a Europa e o Governo português escolhessem um caminho de maior equidade, talvez não temessem a instabilidade na rua e não precisassem de apelar aos sindicatos para se portarem bem. Como se não bastasse tudo o resto, os governos europeus parecem preferir o policiamento à solidariedade.

publicado no Expresso de 20 de Agosto

sábado, agosto 13, 2011

O voyeurismo e a transparência

Numa decisão que tem tanto de pueril como de populista, o Governo achou por bem afixar num site, nomes, idades e remunerações de todos os membros dos gabinetes ministeriais. É uma espécie de versão revisitada e sempre mais rasteira das declarações que os membros do Governo têm de depositar no Tribunal Constitucional com rendimentos e bens e que só têm servido para serem coscuvilhadas pelos media. Até hoje, o que se ganhou com estas declarações foram peças jornalísticas onde ficámos a saber que carro tinha o Ministro A, quantos andares tem e onde vive o secretário de estado B e quantos prédios herdou em compropriedade o Ministro C. O que se perdeu foi o direito de qualquer cidadão, mesmo que vá exercer cargos públicos, a manter reserva quanto àquilo que tem.
Com o novo portal da “transparência” descobrimos que os governantes têm gabinetes, com chefes de gabinete, adjuntos, secretárias e motoristas. Ficámos a saber, por exemplo, o nome dos motoristas e que têm um ordenado base de pouco mais de 500 euros. No fundo, descobrimos o óbvio: a atividade política implica assessoria e esta é paga. Claro que também se descobriu que há excessos: o super-Álvaro tem uma super-lata, o que faz com que tenha uma super-assessora de imprensa e uma super-chefe de gabinete, ambas com super-ordenados, o que só serve para provar a aberração orgânica que é o super-ministério da economia. Em todo o caso, os excessos seriam sempre apuráveis através do Diário da República.
A transparência tem-se tornado uma força avassaladora, mas só uma sociedade com níveis muito baixos de confiança vive obcecada com a transparência. Contudo, como lembrava Manuela Ferreira Leite no Expresso da semana passada, a propósito do portal das nomeações, “não estamos perante um processo de transparência, mas apenas de banal ‘coscuvilhice’”. O problema é que este portal gerador de voyeurismo tem consequências: não está longe o dia em que só estarão disponíveis para exercer funções governativas os boys e as girls, que de outro modo não singrariam e que por isso toleram esta devassa, apresentada como escrutínio público.
Não menos preocupante é o facto desta “transparência” funcionar como uma cortina de fumo, permitindo enorme opacidade nas esferas nas quais, de facto, o interesse público se encontra capturado por lógicas privadas. Enquanto nos entretemos com os salários dos motoristas, o país prepara-se para levar a cabo uma fúria privatizadora, imposta desde fora e extremada pelo voluntarismo ideológico do Governo. Sem que se vislumbre qualquer interesse estratégico na alienação do sector das águas, dos CTT ou da TAP, vamos privatizar em força e a toda a velocidade, inclusive com vendas diretas. Ora, neste domínio é que era necessária transparência, como bem explicou o Presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção, Guilherme d’Oliveira Martins, em entrevista ao Público. Mas nada como cedermos à demagogia e preocuparmo-nos por os ministros terem motoristas, secretárias e assessores.

publicado no Expresso de 13 de Agosto

quinta-feira, agosto 11, 2011

A degradação do serviço público

O modo como do ‘caso Bairrão’ evoluímos para as notícias sobre a violação de segredos dos serviços de informação revelou-nos uma novela inquietante, mas que não tem nada de excepcional no contexto de degradação das funções do Estado e do serviço público.
Os serviços de informação são um domínio sobre o qual deveríamos saber pouco e ao qual o princípio – entretanto feito sacrossanto – da transparência não se deveria aplicar. Nas últimas semanas, ficámos a saber várias coisas que não deveriam acontecer.
É inquietante que um ex-diretor das secretas envie informação, que decorre do trabalho dos serviços, a partir de casa – tanto mais que quem trabalhou no SIS ou no SIED fica vinculado ao segredo de Estado para sempre. Do mesmo modo que é inquietante imaginarmos que há troca de informação entre serviços de informação e empresas privadas que não é sujeita a um protocolo apertado. É o contexto adequado para, em lugar de negócios legítimos e com interesse estratégico entre instituições e empresas, termos trocas entre pessoas e empresas. É neste terreno que medra a corrupção. É não menos inquietante percebermos que um chefe das secretas que escolheu demitir-se nas vésperas de uma Cimeira da NATO invocando como justificação cortes orçamentais, na verdade, o que pretendia era melhorar o seu orçamento pessoal.
Mas, convenhamos, não há nada de excepcional no que se passou agora nos serviços de informação. A transumância do chefe do SIED para um grupo de comunicação social é apenas a versão extrema do que já se passa em muitos outros sectores da administração pública, com o picante adicional de se tratar de alguém que conhece segredos. Tal como os pilotos da Força Aérea que beneficiam da formação militar para irem ganhar dinheiro na aviação comercial ou os membros do governo que vão trabalhar para o sector privado nas áreas que tutelaram, o ex-diretor dos serviços de informação trocou a ética do serviço público pelo vil metal.
Estes episódios são também a outra face da degradação deliberada das funções do Estado e implicam deterioração da soberania nacional. No passado, uma carreira na administração pública era alicerçada num ethos de serviço, hoje, o desmantelamento e a deslegitimação do Estado – a outra face da espiral de austeridade – só podem culminar em episódios como este. É particularmente grave que também nos serviços de informação se assista a esta degradação da coisa pública. Até porque, é sabido, demora décadas a solidificar a autoridade do Estado e a construir um serviço de informações eficaz. Mas é preciso muito pouco tempo para fazer ruir a capacidade do Estado e para desmantelar um serviço de informações.
Por absurdo que possa parecer, ainda assim, esta novela acabará por ter um efeito positivo. Em lugar das razias e das mudanças radicais que pareciam inspirar o novo Governo, agora, tornar-se-á inevitável que os serviços de informação sejam devolvidos à discrição, ao consenso e ao gradualismo.

publicado no Expresso de 6 de Agosto

Ainda agora começou

Que tenham sido precisas apenas semanas para o Governo deitar fora as suas promessas mais emblemáticas é sinal de que Passos Coelho não estava preparado para governar e que o que era prometido não era para ser levado a sério. Só assim se explica que, após a subida de impostos, o Governo se tenha entretido na criação de novas estruturas orgânicas e a repartir o conselho de administração da Caixa por uma coligação das sensibilidades políticas da coligação PSD/CDS/Belém que nos governa. Para quem se propunha diminuir a despesa e pôr fim à partidarização do Estado, estamos conversados.
A verdade, em política, não é uma categoria abstracta; pelo contrário, deve ser avaliada com base nas promessas que são feitas. Imaginemos se, por absurdo, a proposta de Passos Coelho para criar um Conselho Superior da República, presidido por um ex-Presidente da República, com vista a promover a audição prévia dos nomeados para funções públicas, tem sido levada avante. O que teria esse conselho a dizer da nova administração da Caixa?
Dir-me-ão que não é novidade a partidarização da Caixa. É um facto, mas a repetição de um erro não seve para o justificar e no passado existia, pelo menos, a preocupação em garantir níveis mínimos de pluralismo. Não por acaso, o presidente nomeado pelo anterior executivo era um ex-ministro de Cavaco Silva. Desta feita temos o número dois do Conselho Nacional do PSD como vice-presidente (Nogueira Leite); um ex-presidente do PSD na assembleia geral (Rui Machete, aliás, ex-presidente do conselho superior da SLN, a sociedade que detinha o BPN), a quem se juntam vários ex-governantes do PSD/CDS.
Para além da ocupação partidária, chocam também as contradições e as promiscuidades. Por exemplo o CDS, que há um par de meses fazia circular um power-point onde se mostrava indignado com o vencimento dos gestores públicos, comparando-os com o salário de Merkel, não se inibiu de colocar um representante na administração. Espera-se agora que este aja em conformidade e que veja o salário indexado à da chanceler alemã (que é cerca de metade) e que defenda também uma redução salarial para os seus colegas de administração. Já Pedro Rebelo de Sousa, também nomeado administrador, há pouco tempo dizia não compreender “como é que o sócio de uma sociedade de advogados pode ser administrador de uma empresa que é sua cliente”. Rebelo de Sousa é, a crer no Público, advogado da Compal/Sumol, uma empresa detida em 21% pela Caixa e sobre a qual corre um processo crime de natureza fiscal, envolvendo as duas empresas.
Pensando bem, o despautério que caracterizou a escolha da nova administração da Caixa faz sentido. Passos Coelho nunca escondeu a vontade de privatizar o banco público. No fundo, já começou a fazê-lo. Mesmo para quem defenda um banco de capitais nacionais, que seja um referencial estabilizador do sistema financeiro e instrumento de prossecução do interesse público, torna-se muito difícil defender a sua não-privatização perante espetáculos destes. Se calhar, o objectivo é mesmo esse: inviabilizar a defesa de uma Caixa pública.

publicado no Expresso de 30 de Julho