segunda-feira, outubro 31, 2011

Mais vale tarde do que nunca

Mais vale tarde do que nunca
O Presidente tem dado sinais de que finalmente compreendeu a natureza da crise e as suas manifestações em Portugal. As intervenções sobre política europeia e, esta semana, as críticas à política orçamental são um virar de página.
Com consequências políticas imediatas. Cavaco Silva ocupou o espaço deixado vago por uma oposição hesitante e tornou legítimas as críticas ao orçamento. O que era até há dias uma inevitabilidade, passou a ser passível de ser criticado.
O apelo a uma maior equidade no esforço de consolidação foi a face mais visível das críticas, mas não é o aspecto mais relevante do que foi dito. Cavaco Silva sugeriu que se deveria aliviar um pouco a função pública e distribuir mais os sacrifícios – uma opção à qual o PS está amarrado, pois foi seguida pelo Governo anterior. No essencial, questionou toda a estratégia de consolidação: em primeiro lugar, reiterando um diagnóstico sobre o que nos trouxe até aqui; em segundo, alertando para os riscos estruturais dos pressupostos em que assenta a política orçamental do Governo.
Depois de ter sublinhado o carácter sistémico da crise do euro, o Presidente chamou a atenção para a incapacidade de a economia portuguesa se tornar competitiva no quadro da união monetária. No fundo, estamos como estamos não por “culpa de Sócrates” – a explicação simplista – mas por não nos termos adaptado a um novo contexto, que aliás tinha incentivos perversos. As responsabilidades são naturalmente mais complexas do que por oportunismo eleitoral nos quiseram fazer crer.
Ainda assim, onde o aviso do Presidente é mais contundente, com réplicas que se sentirão ao longo de 2012, é quando diz que “ajustamentos baseados numa trajectória recessiva são insustentáveis”. Nada de mais verdadeiro. Portugal prepara-se para aplicar a receita que a Grécia levou a cabo em 2011: cortes na função pública e nas pensões em redor de 15% e aumento generalizado da carga fiscal. Há um ano, a Grécia projectava uma recessão de -2,6%. Hoje, tudo aponta para que o PIB caia 5,5%. Entretanto, o défice disparou e foram exigidas mais medidas.
Perante este cenário, a opção de Vítor Gaspar é intensificar a estratégia seguida até aqui, com um optimismo cego em relação aos efeitos recessivos dos cortes. Acontece que o orçamento para 2011 não era exequível, do mesmo modo que o memorando assenta em pressupostos errados e este orçamento só agrava estes problemas. O que nos traz de novo a Cavaco Silva. O Presidente tem inteira razão, mas ainda não extraiu um corolário lógico do seu discurso. Um político realista estaria a lutar pela reavaliação do memorando e a renegociar os prazos da sua aplicação. Todas as alternativas a esta opção assentam num voluntarismo ideológico contraproducente. Agora, o governo ainda pode responsabilizar Sócrates, daqui a um ano estará na mesmo lugar, mas em pior situação orçamental e sem poder recorrer ao bode expiatório que agora está mesmo à mão de semear. Já em Portugal, estaremos mais pobres e sem termos resolvido o problema da dívida e do défice.

publicado no Expresso de 22 de Outubro

segunda-feira, outubro 24, 2011

Por favor, apoiem-nos

A notícia é do final da semana passada e a indiferença com que foi recebida é um sintoma grave da passividade reinante. Em comunicado, o gabinete do primeiro-ministro anunciou, deixando transpirar um tom de satisfação, a criação de um “grupo de apoio a Portugal” com vista a “assessorar o executivo português na agilização dos fundos comunitários”. No mesmo comunicado ficámos a saber que a equipa teria cinco pessoas em permanência em Lisboa a trabalhar junto do Ministério das Finanças e da Esame (a estrutura que acompanha a implementação do memorando), coordenadas desde Bruxelas.
No fundo, depois da perda de soberania com o memorando de entendimento, o governo acaba de assumir a falência técnico-administrativa do Estado. O que nos é dito é que há uma equipa de peritos estrangeiros que vem fazer agora o que fomos capazes de fazer durante décadas: programar, gerir e implementar fundos comunitários. Que isto seja requerido pelo governo e aceite silenciosamente por todos é revelador do pouco respeito que temos pela nossa própria soberania. Pelos vistos, a nossa administração pública perdeu as suas capacidades e ninguém o fez notar.
O caso parece-me demasiado grave para se circunscrever às suas implicações políticas imediatas. Mas, ainda assim, elas são evidentes.
Por um lado, ficam demonstrados os efeitos perversos de termos um governo pequeno. O ministro da Economia acumulou demasiadas responsabilidades e não foi capaz de dar conta do recado. Para além da economia, do emprego e das obras públicas, também tinha a competência de tutelar a gestão dos fundos comunitários. Perdeu-a e alienou-a parcialmente para uma entidade externa. Começamos a pagar os custos de uma orgânica governamental que não tinha racionalidade. Por outro lado, o próprio governo português assume a incapacidade do titular da Economia. Só assim se explica que o “grupo de apoio” vá trabalhar junto das finanças quando a tutela dos fundos comunitários é do ministro Santos Pereira. A mensagem política é clara: também para o Governo o ministro da Economia começou a deixar de existir.
Mas, o mais grave é o sinal que é dado sobre a degradação da administração pública. Nenhum estado soberano se construiu sem uma administração autónoma e eficaz. A ligeireza com que o governo recorre a este tipo de auxílio externo coloca-nos ao nível dos países que dependem da cooperação estrangeira para ultrapassar os seus bloqueios e insuficiências institucionais. O caso é inédito, Portugal não fazia parte desse grupo de países. Convenhamos, contudo, que tendo em conta que os cortes na despesa pública não assentam em nenhuma reforma estratégica do Estado, o resultado final só poderá ser uma degradação generalizada das competências da administração. Não faltará muito para que todo o interesse público passe a ser gerido, em regime de outsourcing, por “grupos de apoio”.

publicado no Expresso de 15 de Outubro

quinta-feira, outubro 20, 2011

Comentário às declarações do PR a propósito do OE 2012

quarta-feira, outubro 19, 2011

Afundar o Estado

O papel estratégico do Estado precisa de ser repensado. É uma evidência que salta aos olhos de qualquer um – por força do défice de sustentabilidade financeira, por alterações profundas do contexto para o qual foram pensadas muitas das políticas públicas e, não menos importante, por existirem demasiados casos de péssima gestão, nomeadamente no sector empresarial do Estado. Mas uma coisa é contrariar o imobilismo dos que fingem que tudo vai bem, outra, bem diferente, é aproveitar o actual contexto para inviabilizar a reabilitação do Estado. Infelizmente, são demasiados os exemplos em que se evita repensar as funções do Estado, optando por deslegitimar a sua acção, fazendo com que ele não aja de boa fé. É um caminho soez para concretizar o projecto ideológico de um Estado mínimo. Há muitos exemplos deste tipo de actuação.
O mais conhecido e duradouro é o das dívidas a empresas privadas. Não se trata apenas de uma limitação à viabilidade económica de muitas empresas, mas, também, de um exemplo gritante de como o Estado, impunemente, não respeita os seus compromissos.
Mas, para provar que há sempre novas formas de degradar a imagem das políticas públicas junto dos cidadãos, este governo não perdeu tempo para confirmar que é um erro partir do pressuposto de que o Estado é pessoa de bem.
Estava previsto para o início do ano lectivo a entrega de prémios pecuniários para os melhores alunos do ano passado. É legítimo discutir a distribuição de dinheiro como forma de reconhecer mérito académico, pelo que a suspensão dos prémios poderia bem ser feita no próximo ano lectivo. O que já não é aceitável é que, apenas porque se mudou de ministro, se decida, nalguns casos a horas da entrega, retirar os prémios que estavam já destinados. A mensagem dada aos estudantes é clara: não confies no Estado, pois o que ele diz num dia não se importa de desdizer no dia seguinte.
Para recensear as fundações que existem – um trabalho de natureza administrativa necessário para pôr fim a excessos –, a maioria parlamentar não encontrou melhor solução do que aplicar uma medida preventiva que suspende todas as fundações, amalgamando situações muito diferentes e não separando o trigo do joio. As consequências são claras: a decisão, reveladora de um autoritarismo de Estado que em Portugal está sempre à espreita, suspende também preventivamente as três universidades que entretanto se haviam tornado fundações e casos de sucesso na gestão pública. Perante as boas práticas, o que o Estado oferece é incerteza e um quadro de paralisia institucional que se arrastará durante meses.
Podemos pensar que estes exemplos não passam de casos de incompetência, incúria legislativa ou apenas dislates causados pela cegueira política. No entanto, é possível que assim não seja. O mais provável é estarmos perante passos de uma estratégia mais ambiciosa e que visa afundar o Estado, inviabilizando a sua reforma.

publicado no Expresso de 8 de Outubro

sábado, outubro 15, 2011

Já somos a Grécia

Até há dias, a estratégia do governo passava por diferenciar Portugal da Grécia. Paradoxalmente, para evitar sermos vistos como a Grécia, a solução agora proposta é a mesma que levou ao descalabro económico e social que se vive nas ruas de Atenas. O fim dos subsídios de férias e de Natal, a somar a todos os outros cortes salariais e aumentos de impostos, terá inevitavelmente duas consequências: o colapso da procura interna e uma recessão ainda mais profunda do que o previsto. Entrámos definitivamente numa espiral recessiva que nos deixa apenas uma garantia – ao fundo do túnel, encontraremos um túnel ainda mais longo e escuro. Com o que se anuncia para o Orçamento de 2012, Portugal passou a ser a Grécia.
O primeiro-ministro justificou os cortes bem para além da Troika com base num conjunto de surpresas que terá encontrado. Nenhum dos documentos de execução orçamental conhecidos dá cobertura às afirmações de Passos Coelho. O único desvio conhecido resulta da Madeira, do BPN e da degradação da receita fiscal, fruto da austeridade adicional. Até prova em contrário, o elemento de surpresa é o conjunto de mitos em que assentou a campanha eleitoral do PSD. Recuperar as justificações de Passos Coelho para chumbar o PECIV é penoso e fragiliza hoje a capacidade política do primeiro-ministro. Da austeridade que era excessiva passámos, como por arte mágica, para uma austeridade necessária. Para quem se alcandorou na verdade, estamos falados.
A receita que nos é oferecida é um caminho para o desastre e assenta num voluntarismo que recupera o pior dos amanhãs que cantam. Não é possível vislumbrar nenhum círculo virtuoso nesta solução: as receitas do Estado só poderão retrair-se, o défice e a dívida tenderão a crescer em % do PIB, a economia colapsará e as famílias ficarão bem mais pobres, com o desemprego a disparar para valores que não encontram paralelo na sociedade portuguesa das últimas décadas. Tudo em nome de uma austeridade expansionista que não passa de uma ambição ideológica, desprovida de sustentação empírica – particularmente num contexto de crise económica que nos deixa dependentes de exportações que nunca poderão compensar todas as outras perdas.

comentário ao que se conhece do Orçamento para 2012, publicado hoje no Expresso.

Comentário sobre o que se sabe do OE 2012

segunda-feira, outubro 10, 2011

Eu tenho um sonho: a recessão

Se me perguntarem se conheço alguma explicação concisa da crise, tenho resposta pronta. Um vídeo de três minutos e meio, de um directo num noticiário da BBC, em que um corretor anónimo descreve, através de uma combinação lúcida de candura com ironia cínica, os mecanismos que regulam os mercados financeiros e o modo como estes se encarregarão de aprofundar a recessão.
Alessio Rastani, é este o nome e vale a pena ver o vídeo que esta semana se tornou viral. As lições não poderiam ser mais cruas. Perante uma jornalista boquiaberta, Rastani declara que a actual crise económica “é como um cancro. Se se limitarem a aguardar, esperando que ela se afaste, tal como um cancro, vai crescer e vai ser tarde de mais.” Esta afirmação, contudo, limita-se a assentar numa metáfora poderosa e pouco nos diz sobre a natureza da crise. É na explicação das causas do cancro que Rastani é particularmente mordaz.
O resumo dos postulados em que assentam os mercados financeiros assenta num primeira axioma: “os mercados são movidos pelo medo”. No que é uma evidência com forte suporte empírico, Rastani afirma que os grandes fundos não confiam nos pacotes de resgate, não se preocupam com o euro e antecipam um comportamento muito negativo dos mercados. Os investidores têm medo do cancro e é esse medo que os move. Mas se assim é, no fundo os mercados revelam lucidez – não se percebe como é que os sucessivos pacotes de austeridade na zona euro podem funcionar.
Depois, com um realismo desarmante, afirma que não há razões para estar optimista quanto à capacidade dos governos para lidarem com a situação: “os governos não mandam no mundo, quem manda é a Goldman Sachs.” E aqui Rastani talvez não tenha razão: é excessivo atribuir tanto poder a uma única instituição, quando um dos problemas actuais é a desinstitucionalização e fragmentação do poder.
Finalmente, deixa uma declaração que o transformou numa personificação do mal. Confessando-se pouco preocupado com o que pode ser feito, afirma que aguarda por este momento há três anos. Todos os dias quando se deita, sonha com uma nova recessão: “quando o euro e os grandes mercados bolsistas colapsarem, se souberes o que fazer, podes ganhar muito dinheiro. É preciso que as pessoas aprendam a ganhar dinheiro com um mercado em perda”.
Numa entrevista posterior à Forbes, Rastani confessou-se estupefacto com as ondas de choque da sua aparição televisiva – “eu estava convencido de que toda a gente tinha presente este tipo de coisas”. Pelos vistos, não. Até porque é difícil encontrar três minutos e meio tão eficazes na demonstração de que os mercados são agentes racionais (procuram maximizar as oportunidades de lucro) mas que da soma das suas acções não resulta nenhuma racionalidade (a natureza sistémica da crise) e de que a actos individuais racionais não correspondem necessariamente comportamentos movidos pela ética.

publicado no Expresso de 1 de Outubro

segunda-feira, outubro 03, 2011

Custa a perceber

Custa a perceber
4 de Fevereiro de 2010. Numa comunicação ao país em tom grave, Teixeira dos Santos apela aos partidos para que, no dia seguinte no parlamento, não aprovem um conjunto de alterações à Lei das Finanças Regionais. Para o ministro das finanças, o que estava em causa era suficientemente grave. Num contexto em que Portugal tinha necessidade imperiosa de controlar o endividamento, "não faz qualquer sentido que as regiões autónomas, em particular o Governo Regional da Madeira, vejam aumentadas as transferências que recebem do Orçamento do Estado e vejam alargadas as condições para se endividarem ainda mais". No dia seguinte, PSD e CDS, coligados com PCP e BE, votariam favoravelmente as alterações à lei. Em finais de Agosto deste ano, começou a ser conhecido o buraco financeiro na Madeira, bem como o conjunto de violações grosseiras do Estado de direito cometidas pelo Governo Regional para ocultar a voragem da dívida.
23 de Março de 2011. O Parlamento chumba em bloco o PEC IV. Para Passos Coelho, o novo pacote de austeridade era inaceitável porque “se limitava a pedir sacrifícios redobrados aos portugueses”. Desde Junho, o Governo apresentou três subidas de impostos e nenhum corte nas “gorduras do Estado”, as tais que não acarretariam mais sacrifícios para os portugueses. Hoje, de facto, estamos no PEC VII, sem que se conheça qualquer “desvio colossal” que o justifique, para além do efeito combinado da ocultação das contas da Madeira e do caso de polícia que é o BPN. Entretanto, esta semana, na primeira entrevista desde que tomou posse, Passos Coelho revelou que “as despesas públicas em saúde, em educação, nos apoios sociais (...) somam grande parte dos impostos” e que, por isso, “não é possível fazer no curto prazo uma reestruturação da despesa”. No fundo, duas constatações elementares que nunca haviam ocorrido a alguém que andava há décadas a preparar-se para ser primeiro-ministro.
8 de Maio de 2011. A desvalorização fiscal é apresentada no programa eleitoral do PSD como solução milagrosa para aumentar a competitividade da economia portuguesa. A crer em Passos Coelho, o PSD tinha estudos que permitiriam diminuir a TSU e encontrar soluções compensatórias para a diminuição de receitas da segurança social. Álvaro Santos Pereira defendia mesmo “uma descida substancial da TSU em 10 ou 20 pontos percentuais”. Depois de Vítor Gaspar ter desvalorizado um par de vezes a viabilidade de uma descida eficaz da TSU, Passos Coelho, ainda na entrevista à RTP, sublinha que se trata de um compromisso constante do memorando de entendimento. O que era um ‘game changer’ para a nossa economia, passou a ser apenas mais uma medida que temos de aplicar porque a isso somos obrigados.
Custa muito a perceber a razão por que os candidatos a primeiro-ministro se empenham em fragilizar as condições em que mais tarde vão exercer o cargo. Infelizmente, nunca saberemos se o fazem movidos por puro eleitoralismo ou se se trata apenas de impreparação.

publicado no Expresso de 24 de Setembro