terça-feira, novembro 29, 2011

Ir para além da Merkel

Movido por voluntarismo ideológico, o Governo anunciou que iria além da troika. Nos próximos anos, o aprofundar da recessão encarregar-se-á de demonstrar a dimensão do erro. Entretanto, como se não bastasse, o primeiro-ministro resolveu expor a sua doutrina sobre o papel que o BCE deveria desempenhar na resolução da crise. Para Passos Coelho, o BCE deve limitar-se a fazer o que tem feito, ou seja, praticamente nada, permitindo, pelo caminho, que a espiral contagiosa da crise da dívida soberana se tornasse imparável. A alternativa – transformar-se num verdadeiro banco central e funcionar como financiador de último recurso – seria, para o primeiro-ministro português, dar “um péssimo sinal aos países indisciplinados”. Fica claro: depois de ir para além da troika, Passos Coelho optou por ir para além da Senhora Merkel e da visão alemã sobre a natureza moral da crise.
A posição do primeiro-ministro representa uma divergência estratégica com o Presidente da República, que tem insistido na posição contrária. Mas, convenhamos, a discordância entre as duas principais figuras do Estado está longe de ser o aspecto mais inquietante. O que é preocupante é termos um primeiro-ministro com uma posição que não defende o interesse nacional, nega o carácter sistémico da crise da zona euro e insiste na sua natureza moral (“uns indisciplinados estes povos do sul”), enquanto considera perversas as alterações necessárias na arquitectura do euro.
É assustador descobrir que Passos Coelho está convencido de que é possível solucionar o problema português com ajustamentos austeros não acompanhados por uma intervenção radicalmente diferente do BCE e uma política orçamental expansionista nos países com excedentes na balança de transacções correntes. Prosseguir neste caminho é insistir no pré-anúncio do fim do euro.
Este padrão, aliás, é apenas uma versão extrema do que tem sido a opção política de todas as economias intervencionadas. Primeiro, procura-se a diferenciação face ao vizinho do lado – que, é-nos dito, está numa posição mais complexa (o “nós não somos a Grécia”) –, para, depois, se afirmar que sozinhos somos capazes de enfrentar os problemas. Na verdade, esta estratégia tem sido seguida em toda a periferia, levando ao isolamento dos casos, secundarizando a dimensão partilhada dos problemas e promovendo uma neutralização da posição negocial dos países ‘fracos’. O que sugere que o problema político talvez seja também de incapacidade do sul e não apenas de falta de vontade alemã.
Como propunha esta semana, num artigo no Irish Times, Daragh McDowell, em lugar de aceitarem as soluções que lhes estão a ser impostas, o que os PIIGS deveriam fazer era optar por uma posição negocial conjunta, ameaçando, em último caso, com a utilização da ‘bomba atómica’ ao seu dispor: um default coordenado de todas as economias da periferia. Talvez assim, o eixo Merkozy percebesse o risco sistémico e a impossibilidade política de impor sacrifícios até que os PIIGS passem a competir, pelos baixos salários, com a China e a Índia.

publicado no Expresso de 19 de Novembro.

quinta-feira, novembro 24, 2011

Comentário na SIC-N sobre a greve

segunda-feira, novembro 21, 2011

Um tecnocrata em cada esquina

Num momento em que a zona euro caminha para o colapso, parece ter sido encontrada a solução para as economias da periferia: substituir chefes de governo eleitos por tecnocratas. A opção faz sentido. Tendo em conta que se gerou a convicção de que a responsabilidade da crise foi primeiro de Sócrates, a semana passada de Papandreou, esta semana de Berlusconi e, a crer no que o sempre presciente François Hollande já anunciou, para a semana será de Sarkozy, o melhor mesmo é remover os políticos eleitos que lideram os governos do Sul e colocar, nos seus lugares, técnicos com um perfil acima de toda a suspeita e bem recebidos em Frankfurt. Começou com Papademos na Grécia, prosseguirá com Monti em Itália e chegará rapidamente a Portugal, onde não tardará assistiremos a um apelo à formação de um governo de salvação nacional, que rapidamente evoluirá para um clamor por um executivo presidido por um tecnocrata.
É evidente que Sócrates, Papandreou, Berlusconi, Zapatero e Sarkozy cometeram todos erros na governação, ainda que de natureza bem diferente. Mas é um erro de enormes proporções teimar que o problema das economias da periferia é de natureza política e radica numa incapacidade imputável aos primeiros-ministros. Pensar deste modo é uma forma renovada de insistir na ocultação da dimensão sistémica da crise da dívida soberana e serve para que se possa prosseguir na ficção de que a responsabilidade da situação em que nos encontramos é, em última análise, das democracias – onde os eleitores tendem a tornar inviáveis pacotes de ajustamento como os que têm sido impostos.
Esta semana assistimos a mais um acto da tragédia europeia. À devastação económica, financeira e social, soma-se agora a devastação política, suspendendo constituições e abalando os alicerces em que assentam as democracias.
A ilusão tecnocrática assenta no pressuposto de que só governos não sujeitos ao voto e às pressões partidárias são capazes de implementar as reformas necessárias (invariavelmente muito austeras). Tanto melhor se os governos tecnocráticos forem de salvação nacional (se incluírem todos os partidos do arco da governabilidade lideradas por um independente) – pois assim nenhum partido tem de assumir a responsabilidade pela impopularidade.
Este caminho tem, contudo, riscos evidentes. Ao mesmo tempo que a convergência dos partidos centrais dispersa a responsabilização, potencia também o crescimento dos partidos extremistas – que podem monopolizar a contestação – e secundariza um eixo central da democracia: o controlo do poder executivo pelo soberano, através de eleições.
Pensar que vai ser possível resolver os problemas europeus penalizando moral e materialmente os cidadãos, libertando os executivos do controlo democrático e afastando os cidadãos do processo de decisão é uma ilusão, além do mais, muito perigosa. Um tecnocrata em cada governo é, no fundo, uma visão suavizada da pulsão autoritária que está sempre à espreita, ao virar da esquina.

publicado na edição do Expresso de 12 de Novembro

segunda-feira, novembro 14, 2011

O inferno é o euro

“Vós que aqui entrais, abandonai toda a esperança”. A frase com que Dante nos recebe no Inferno é uma metáfora exacta para a zona euro. Um projecto político moribundo, que amarrou os países da periferia a uma escalada de austeridade, enquanto se mostra relutante em reconhecer a natureza sistémica da crise e avançar para uma solução que reveja as fundações institucionais em que assenta. Uma vez mais, após uma cimeira que resolveria todos os problemas, bastou esperar um par de dias para o mundo voltar a mudar. Primeiro com o efeito de contágio a chegar a Itália, com réplicas a atingir França e, depois, com o precipitar da crise política grega.
Se é verdade que o anúncio do referendo grego veio baralhar as contas ou, nas palavras da senhora Merkel, “alterou profundamente a situação psicológica”, no essencial serviu para mostrar que a crise da dívida soberana é uma verdadeira arma de destruição maciça. Está a destruir, como se fossem peças de um jogo de dominó, as economias europeias e está a destruir, um a um, governos nacionais, sem escolher cor política.
É manifesto que Papandreou se moveu por motivações políticas internas, incapaz de recusar a solução da cimeira da semana passada, ficou preso entre uma maioria parlamentar em decomposição e um apoio popular já inexistente, mas a sua decisão foi reveladora de que, por um lado, há limites para sacrifícios punitivos e, por outro, de que uma crise sistémica necessita de respostas sistémicas.
A crise da dívida soberana indica que há uma dívida do soberano e, como é evidente, em democracia, uma das prerrogativas do soberano é decidir, nomeadamente decidir não pagar. Ora, a curta história das democracias liberais ensina-nos que nunca foi possível sustentar liberdades em contextos de degradação sistemática das condições materiais, baseados numa punição, ainda mais de contornos morais, imposta desde fora. O que a Europa tem feito à Grécia só pode acabar mal, resta saber quando e como é que vai acabar. Até agora tivemos um “choque positivo” com o referendo, depois um espectro de demissão e finalmente negociações para um governo de unidade nacional. Evidentemente, não vai ficar por aqui.
Mas se os limites aos sacrifícios em democracia não são surpresa, não deixa de causar estranheza que uma economia que representa apenas 2% da zona euro possa colocar em risco toda a economia europeia. Quando isso acontece, é porque o problema não é apenas grego, português, irlandês e agora italiano, mas, sim, estrutural. E um problema estrutural não se resolve com o conjunto de analgésicos prescritos na cimeira.
Não é fácil descortinar virtualidades no que se passou esta semana, mas, ainda assim, ficou demonstrado como a democracia é uma arma de último recurso ao serviço dos fracos. A sucessão de jogadas de alto risco de Papandreou revelou que a Grécia tem, ao seu alcance, o poder de fazer colapsar a economia europeia. Talvez depois desta experiência, o eixo Merkozy tenha compreendido que o risco que paira sobre os credores é real e que a Grécia somos todos nós.

publicado no Expresso de 5 de Novembro

quinta-feira, novembro 10, 2011

Comentário na SIC-N sobre crise zona euro

Comentário na SIC-N sobre tomada de posse AJJ

domingo, novembro 06, 2011

Comentário na SIC-N sobre o voto do PS no OE

sexta-feira, novembro 04, 2011

Viver abaixo das possibilidades

A austeridade para ser legítima precisa de ser coerente e equitativa. O que nos é proposto no orçamento revela incoerência e uma penalização dos funcionários públicos desadequada. O mesmo governo que em 2011 aplicou uma sobretaxa a todos os rendimentos do trabalho, escolheu um caminho diverso para 2012, concentrando os sacrifícios na administração pública. Como bem sublinhou o Presidente da República, este caminho encerra uma profunda iniquidade, mas revela também inconstância nas opções.
O Governo justificou a opção afirmando que os funcionários públicos ganham mais do que os trabalhadores do privado. A asserção tem, contudo, um problema: não toma em consideração a heterogeneidade das qualificações dos funcionários públicos.
Como bem demonstrou Rui Peres Jorge no blogue ‘Massa Monetária’ do Jornal de Negócios, existe um prémio salarial médio na administração pública face ao privado que esconde uma distribuição muito assimétrica. Comparativamente, o Estado remunera melhor as profissões menos qualificadas e menos produtivas e pior as mais qualificadas. De acordo com um estudo do Banco de Portugal, em 2005, um economista recebia, em média, menos 36% se trabalhasse no Estado, enquanto um jurista menos 26%. Se somarmos os cortes entretanto anunciados, hoje, para algumas profissões, ser funcionário público significa ganhar metade do privado. Consequência, comparado com o privado, os funcionários públicos mais qualificados vivem claramente abaixo das suas possibilidades.
A lógica perversa de compressão salarial na função pública vai produzir efeitos nefastos. Para além da desmotivação, os incentivos para a saída dos mais qualificados são tantos que a capacidade da administração para defender o interesse público ficará ainda mais fragilizada e a degradação progressiva dos serviços será inevitável. Não por acaso, esta semana já pairou a ameaça de uma debandada geral de médicos que estão em exclusividade no SNS.
Esta reforma do Estado irracional e feita ad hoc esconde objectivos políticos. Por um lado, é-nos dito que a via para a competitividade do país passa pelo empobrecimento generalizado na função pública; por outro, é recuperado, com trinta anos de atraso e particular intensidade, um conjunto de ideias muito populares nos meios académicos sobre as ‘falhas de Estado’ e a forma como os funcionários de topo, em última análise, se apropriam dos recursos públicos, promovendo uma lógica despesista extravagante. Só isso pode explicar a ambição de desmantelar os serviços públicos que está na base da acção deste Governo. Que Portugal tenha sido escolhido para laboratório de um radicalismo académico anquilosado é, se nada mais, assustador.

nota: apesar de ensinar numa universidade pública, não sou funcionário público e o contributo dessa actividade para o meu rendimento é pequeno, mas não tenho dúvidas que é preferível alargar a todos os rendimentos do trabalho e também do capital a tributação, em lugar de concentrar o esforço na função pública.

publicado no Expresso de 29 de Outubro