segunda-feira, março 28, 2011

O pote armadilhado

O sistema político atingiu o ‘ponto de rebuçado’: todos vêem vantagens em precipitar eleições. Com um governo minoritário e perante ajustamentos que não encontram paralelo na democracia, era inevitável que o dia em que PS e PSD convergissem na vontade de ir a votos chegasse.
Até aqui, quando o PS queria eleições, o PSD não queria e quando o PSD queria, o PS não queria. Mas eis que numa semana tudo muda.
Se pensarmos bem, após as legislativas, Sócrates parecia interessado em precipitar uma crise para se relegitimar. Só assim se explica que tenha formado um governo com um perfil político tão baixo e que não tenha, de facto, procurado uma coligação. Acontece que o PSD andava entretido na sua enésima crise intestina, não era parceiro para nenhuma dança e eleições, nem pensar nisso. Depois, seguiu-se um breve interlúdio em que ninguém quis ir a votos. Por essa altura, dançou-se um fugaz tango. Desde então, o mundo mudou. O PSD foi alternando entre pedir desculpas de novo ou precipitar uma crise – consoante Passos Coelho se sentia mais ou menos inclinado a responder às pressões da sua estrutura de poder interna, com vontade crescente de ir ao “pote”. Já Sócrates ia gerindo a perda de soberania, com cada vez menos margem de manobra, enquanto deitava para o caixote de lixo da história o seu programa eleitoral.
Agora, todos convergem para eleições. O que não só não resolverá nenhum problema, como se encarregará de demonstrar que o nosso ajustamento depende também de uma coligação política, estável e previsível, que envolva, pelo menos, o PS e o PSD.
Sócrates colocou-se na menos má das posições que pode ambicionar para os próximos anos. Conseguiu um resgate menos desfavorável do que o da Grécia e Irlanda e ainda não será eleitoralmente devastado pela impopularidade das medidas muito duras, que, apenas agora, começam a ser implementadas. É o único momento em que pode disputar eleições – mesmo que seja muito penalizado por ter nacionalizado sistematicamente a crise, abdicando de fazer pedagogia sobre a austeridade e dourando a realidade para além de todas as evidências.
Passos Coelho está preso num nó cego. Não pode pedir de novo desculpas e os seus apoiantes não lhe perdoariam mais um adiamento. Mas apresentar-se-á aos portugueses sem programa político e a rejeitar políticas que nos são impostas pela Europa e que sua família política (o PPE) diz serem necessárias. Para utilizar a sua expressão, Passos Coelho pode chegar ao pote, o problema é que vai encontrar o pote armadilhado e terá de aplicar a mesma dieta que agora rejeita, ou, alternativamente, uma ainda mais dura.
Os dados estão lançados. Passos Coelho afirmou que “a peça de teatro chegou ao fim”. Tem, em parte, razão. Doravante, assistiremos a outros actos da mesma tragédia, mas com novos actores. É bem provável que um dos próximos seja a experiência inédita de termos uma juventude partidária a governar o país. Com uma agravante: tal irá acontecer no pior dos momentos para experimentalismos adolescentes.

artigo publicado na edição do Expresso de 19 de Março

Bloco Central sobre a demissão de José Sócrates

pode ser ouvido aqui.

terça-feira, março 22, 2011

há resgates e resgates

O País enfrenta um impasse político. O Governo demite-se se o PEC IV for chumbado, a oposição garante que o chumbará. É possível evitarmos eleições?

Possível é, mas, como estava escrito desde as últimas eleições, não irá acontecer. Os vários actores políticos não souberam estar à altura da responsabilidade do momento dramático que vivemos em Portugal e no conjunto da Zona Euro.


Quem são os responsáveis?

O primeiro-ministro que, enquanto conseguiu um resgate menos desfavorável que o da Grécia e da Irlanda, continua a demonizar a ajuda externa que de facto já existe e teve sempre reservas em relação a uma coligação; o Presidente da República que, após o inenarrável episódio das escutas ficou tolhido, permitiu a formação de um governo minoritário e depois, na tomada de posse, não lhe ocorreu melhor do que recusar ‘mais sacrifícios’, quando sabia que eles eram inevitáveis e faziam parte de uma negociação em curso com a Comissão e o BCE; e o líder da oposição que, enquanto vai alimentando umas vacuidades sobre os consumos intermédios e sabendo que terá de aplicar a mesma dieta que agora recusa, é movido pela pressão do aparelho que o elegeu, que quer o mais rapidamente possível ir “ao pote”.

Hoje Jean Claude Juncker disse que Portugal assumiu compromissos e que tem de os cumprir. Não cai por terra a ideia do Governo de que todas as medidas são negociáveis?

A margem de manobra que nos resta é quase inexistente e, nesta fase, sem que haja uma revisão profunda da arquitectura da Zona Euro, afirmações como, “distribuir os sacríficios” ou “não penalizar os do costume” não passam de slogans sem qualquer exequibilidade.

Corremos o risco de, se tivermos eleições, não termos um Governo maioritário e enfrentamos exactamente os mesmos bloqueios?

As eleições vão servir apenas para revelar a insustentabilidade da nossa situação. Medidas de austeridade como as que temos de implementar só são possíveis com uma coligação que envolva, pelo menos, o PS e o PSD e que tenha suporte de Belém. Isso não aconteceu até agora, não vejo porque vá acontecer no futuro. Desde logo, porque se criou um clima de antagonismo militante em Portugal que demorará a ser superado.

Ainda acredita que é possível evitarmos um resgate internacional?

Neste momento já não nos financiamos autonomamente no mercado primário. Logo, já estamos a ser resgatados. Mas a solução que foi encontrada é melhor do que a da Grécia e da Irlanda. Há resgates e resgates e o tempo tem sido e continuará a ser um factor decisivo.

aqui fica a a micro-entrevista que dei ao Económico de hoje (com um título meu, diferente do escolhido)

domingo, março 20, 2011

Se isto é um Presidente

Na nuvem de palavras que reproduzia os termos mais utilizados por Cavaco Silva no discurso de posse, Europa aparecia pouco e era impossível vislumbrar a palavra ‘Euro’. Numa intervenção de quarenta minutos, devastadora para o Governo e com um diagnóstico muito critico do país é incompreensível que assim seja. Por muitos males nacionais que existam, não enquadrar a nossa situação na crise da dívida soberana da zona Euro não ajudará a resolver nenhum dos problemas que enfrentamos. Trata-se, apenas, de mais um contributo para a nacionalização da crise que está em curso e que se encarregará de nos afundar mais no buraco profundo onde já nos encontramos. Cavaco Silva foi mais um na longa lista daqueles que alimentam uma ilusão de soberania, trocando discursos críticos, esquecendo que vivemos já num contexto em que os Governos nacionais, de facto, pouco podem fazer.
O Presidente, que no seu discurso não hesitou em se posicionar no pedestal de autoridade que construiu para si próprio, a certa altura afirmou que “muitos dos nossos agentes políticos não conhecem o país real, só conhecem um país virtual”. Para alguém que sugere que conhece tão bem o país real, não deixa de ser espantoso que desconheça o que se passa no mundo real, onde as economias ocidentais enfrentam a mais brutal crise desde a grande depressão. Este desconhecimento deixa-nos uma certeza, o Presidente que no passado não lia jornais, hoje não lê imprensa internacional e não viaja o suficiente.
Cavaco Silva foi certeiro no apelo a um programa estratégico de médio prazo, sustentado num alargado consenso. Na situação em que nos encontramos, um pacto entre os partidos do arco da governabilidade, envolvendo parceiros sociais, que conferisse estabilidade e previsibilidade a um conjunto de opções, para durar para além do tempo deste Governo e/ou desta legislatura, reforçaria as nossas condições negociais na Europa e contribuiria para resolver alguns dos problemas. Mas, com o antagonismo militante que grassa na política portuguesa, a proposta é utópica. A menos que o Presidente se oferecesse como desbloqueador do processo. Acontece que depois de quarta-feira, é impossível olhar para este Presidente como alguém acima das partes, preocupado em unir. O que temos é um líder de facção, pleno de ressentimento por ter sido escrutinado durante a campanha eleitoral e incapaz de alargar a sua base de apoio. Faz algum sentido apelar a um pacto e começar por desfazer o Governo, que teria de ser certamente um dos protagonistas deste acordo?
Esta contradição acaba, no essencial, por revelar a própria impotência do Presidente. Do discurso de tomada de posse só poderia decorrer uma consequência: a utilização da bomba atómica ou a demissão do Governo. Cavaco ataca, apela a um sobressalto e depois segue como se nada tivesse acontecido. Como se não bastasse tudo o resto – a crise internacional, a Europa paralisada, a economia anémica, um Governo embrenhado na sua própria impotência – ficámos também a saber que não teremos um Presidente à altura dos tempos que enfrentamos.

publicado no Expresso de 12 de Março

Bloco Central sobre a crise em torno do PEC IV

ouvir aqui.

domingo, março 13, 2011

Uma missão impossível

Uma missão impossível
A Europa não tem perdido uma oportunidade para perder a oportunidade e o governo português tem aproveitado todas as oportunidades para nacionalizar a crise.
Após ter começado por subvalorizar o impacto da crise, para depois defender que o pior já tinha passado e, mais recentemente, afirmar que não precisaríamos de auxílio, por termos medidas ‘suficientes e necessárias’, esta semana o governo parece ter caído na realidade. No mesmo dia, Teixeira dos Santos, secundado por Sócrates, abriu a porta a medidas adicionais e sugeriu que o esforço nacional seria em vão se a Europa não fizesse a sua parte. São bons sinais e estamos perante o reconhecimento de duas evidências.
A capacidade para controlar o défice é escassa: os executivos só dominam a despesa. O governo pode cortar salários, congelar pensões, extinguir o investimento público, racionalizar despesa, mas enquanto a economia alternar entre recessão e crescimentos medíocres, o preço do petróleo disparar e os custos de financiamento forem crescentes, não é possível consolidar as contas públicas. São demasiadas as variáveis que escapam ao seu controlo para que um governo possa afirmar, de modo taxativo, que diminuirá o défice. Pura e simplesmente ninguém pode prever se será necessária mais austeridade para atingir os 4,6% no fim do ano. O que foi exigido aos países da periferia é uma verdadeira missão impossível, assente no pressuposto errado, mas interiorizado pelo governo, de que se deve nacionalizar a crise.
Do mesmo modo, a dramatização em torno do resgate financeiro, tornado uma questão de vida ou de morte política do executivo, colocou-nos num mau caminho. O importante é saber se há vantagens para o financiamento da nossa economia se recorrermos à ajuda externa. Tal como existe hoje, e pensando na Grécia e na Irlanda, o resgate não só não resolve os problemas existentes, como cria novos.
O que demonstra que a austeridade unilateral é contraproducente se a Europa não fizer a sua parte. E a Europa não tem feito a sua parte. Como se não bastasse não reconhecer que o problema dos países da periferia é fruto de uma arquitectura institucional incapaz de lidar com choques assimétricos e dos desequilíbrios de uma moeda única sem política fiscal comum e sem compensação para os excedentes nas trocas comerciais internas, a Europa entregou-se a uma anomia política devastadora. Como escreveu Wolfgang Münchau no Financial Times, “esta crise é tanto alemã como espanhola. Este reconhecimento deve ser o ponto de partida para qualquer sistema eficaz de resolução”.
Deve, mas não tem sido. Percebe-se que os países do centro resistam a aceitar a natureza sistémica da crise do euro como pressuposto negocial, já não se compreende a capitulação política dos países da periferia. Não devemos exagerar o papel das lideranças no curso da história, mas se considerarmos que os países que podiam comandar a reforma da zona euro estão entregues a uma inexistência política (Zapatero) e a um tresloucado (Berlusconi), torna-se mais fácil entender como chegámos aqui. Serve de pouco, mas não se pode deixar de pensar como seria a gestão desta crise com Kohl na Alemanha, González em Espanha e Delors em Bruxelas.

Sabemos muito pouco

Há dias, o embaixador português descrevia a situação da Líbia como “muito melhor que nos países vizinhos”. É difícil encontrar exemplo mais acabado de distanciamento da realidade. É essa aliás a principal revelação dos eventos das últimas semanas: o Ocidente está refém de acontecimentos que não previu, é incapaz de influenciar e cujo desfecho é incerto.
No meio do desconhecimento, começa, ainda assim, a ser possível descortinar algumas explicações para o que tem acontecido, que permitem algumas lições.
Perante uma revolução, a tendência é procurar paralelismos e causas semelhantes em exemplos históricos. As revoluções árabes parecem resultar, em parte, da incapacidade dos regimes em gerirem expectativas crescentes. Aparentemente, o velho argumento de James C. Davies, que explicava as revoluções com base na ‘curva J’, voltou a ter aderência à realidade. Podemos mesmo estar perante frustração de expectativas depois de um período sustentado de crescimento. As economias cresceram bem acima do Ocidente, os regimes modernizaram-se, mas não o suficiente para redistribuir os ganhos, acentuando a sua ilegitimidade aos olhos de uma população jovem mais qualificada e com novos meios de mobilização política.
Descobrimos também que o mundo árabe é um sistema regional, com os acontecimentos num país a contaminarem o que se passa noutro país. Nessa perspectiva, como sublinhava Anne Applebaum no Washington Post, há paralelismos com o que se passou na Europa em 1848. Um conjunto de revoluções com aspirações semelhantes, mas objectivos distintos, explicações nacionais idiossincráticas e processos diferentes. Convém recordar, contudo, que as mudanças iniciadas em 1848 só se consolidaram meio século depois.
Tudo isto nos deve levar, antes de mais, a desconfiar de narrativas promovidas pelos regimes autoritários. A captura dos serviços de informação ocidentais pelos serviços locais de regimes amigos deixou-nos pendurados. Fomos comprando acriticamente a ideia de que, por um lado, ‘estava tudo calmo’ e, por outro, que depois de ditadores autocráticos chegaria o dilúvio. O que é estranho, porque já sabíamos, pelo menos desde a transição na Indonésia, que a uma autocracia pró-americana e anti-islâmica não tem necessariamente de se seguir uma ditadura não secular e fundamentalista.
O que serve para lembrar que o neo-conservadorismo tinha razão quando defendia que não podíamos abdicar de promover as liberdades. Como disse, um dia, Condoleeza Rice, “a América trocou liberdade por estabilidade e não teve nenhuma das duas”. O problema é que a imposição da liberdade à bomba, como biombo para esconder a defesa de interesses estratégicos em torno do petróleo, tornou, hoje, muito escassa a capacidade de influência dos EUA e da Europa.
Mas, a principal lição é mesmo que o Ocidente não se deve entreter a aprofundar relações com ditaduras. E quando isso acontece, precisamente em nome do realismo, é aconselhável procurar conhecer de facto as realidades locais. O indisfarçável entusiasmo comercial do Estado português com o regime brutal e bizarro de Kadhafi é, a este propósito, um aviso para o futuro. Precisamos de conhecer melhor o mundo antes de nos expormos tanto às suas contingências.

publicado no Expresso de dia 26 de Fevereiro

Bloco Central: novo PEC e tomada de posse de Cavaco Silva

Para ouvir aqui.