terça-feira, junho 19, 2012

Um projeto inaufragável


A resposta que a Europa tem dado à crise da zona euro tem sido fantástica, da mesma forma que o Titanic era um navio extraordinário. Na altura do embarque gerou entusiasmo, mas sabemos para onde se dirigia. Um pouco por toda a Europa, continua-se a agir como se o euro fosse ‘inaufragável’, sendo certo que temos boas razões para estarmos preocupados.
Com o resgate à Espanha fica uma vez mais demonstrado que o essencial do problema não é nem espanhol, nem irlandês, nem português, nem grego. O problema é do euro e só será ultrapassado quando se alterar a arquitetura institucional da moeda única. Até lá, estaremos condenados a que cada solução de emergência se revele temporária (os mercados reagem mal e a notação cai) e que surjam novas contrariedades (à Espanha, seguir-se-á a Itália e por aí fora).
Afirmar que o essencial é a arquitetura da zona euro não significa que Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha não têm dificuldades nas suas economias. Pelo contrário: têm problemas bem profundos e distintos. Acontece que as soluções encontradas para responder à crise da dívida soberana não só não contribuem para que os países sob resgate superem os seus bloqueios, como têm mesmo o condão de os aprofundar – ao mesmo tempo que produzem um efeito de contágio que não se sabe onde poderá parar. Se o caminho que tem sido seguido nos dois últimos anos for prosseguido, não faltará muito tempo até escutarmos Merkel a declarar “nós não somos a França”.
A este propósito, vale a pena recuperar o seminal The World in Depression 1929-1939 de Charles Kindleberger, publicado há quarenta anos. Então, o historiador económico identificava três mecanismos que transformaram uma crise financeira com epicentro bem definido numa grande depressão. Os paralelismos com os nossos dias são evidentes.
Em primeiro lugar, o pânico. Para Kindleberger os surtos de pânico repentinos são uma condição dos mercados financeiros e geram comportamentos extremos. A sua segunda asserção prende-se com o poder de contágio. A crise de 1931 começou num centro financeiro pequeno – Viena – mas, ao não ser estancada, saltou até Berlim, desenvolvendo metástases a um ritmo imparável. Do mesmo modo que a Áustria constituiu uma ameaça letal em 1931, também a Grécia, na ausência de intervenção eficaz, tornou-se num perigoso detonador. Finalmente, as raízes da depressão prenderam-se com a ausência de uma intervenção com capacidade hegemónica mas sensível aos interesses dos Estados mais pequenos e empenhada em estabilizar os fluxos financeiros, funcionando como emprestador de último recurso. Nos anos trinta, a Grã-Bretanha já não tinha essa capacidade e os EUA não o quiseram fazer, enquanto a Europa, saída da 1ª Guerra, estava longe de ter um poder centralizado. Hoje também se assiste a esta reação inerte.
Presenciarmos passivamente, na Europa, a repetição dos erros dessa década, enquanto nos entretemos com uma fustigação moral e assistimos a uma discussão sobre culpas é assustador e alarmante. Mas, no fundo, revela a mesma convicção quase-teológica em que assentou a construção do Titanic.
publicado no Expresso de 16 de Junho

Novas do capitalismo científico


As palavras importam e em política importam muito. A semana passada, numa entrevista reveladora ao Económico, António Borges reconhecia, com satisfação, que o Governo estava a “limpar” a economia, para logo sublinhar a urgência de uma baixa generalizada de salários; dias mais tarde, Vítor Gaspar diria, no tom pausado próprio de quem cumpre uma missão, que era necessário “restringir as extensões dos acordos colectivos de trabalho”, ou seja, não aplicar a milhares de trabalhadores as condições salariais negociadas entre sindicatos e empregadores. Pelo caminho, a troika, uma vanguarda do pensamento mágico, veio responsabilizar, uma vez mais, a “rigidez do nosso mercado laboral” pelo crescimento galopante do desemprego.
Estamos perante gente perigosa, movida por um pensamento baseado num conjunto de asserções académicas, com escassa ligação à realidade, mas que nos são apresentadas como científicas, assentes em leis gerais. Mais, no que é um traço distintivo, de cada vez que a realidade não confirma os seus pressupostos e não se comporta como esperado, a justificação só pode ser uma: a dose aplicada não foi suficiente. O desemprego está a aumentar devido à rigidez do mercado laboral? Flexibilize-se a legislação. O desemprego continua a crescer? Isso só pode acontecer porque não se flexibilizou o suficiente a legislação. Logo, flexibilize-se ainda mais. Entretanto, caminhamos para a chinezização do nosso modelo económico.
Para quem olha para a economia deste modo, o desemprego nunca pode ser consequência da austeridade, do colapso da procura interna e da não utilização da capacidade produtiva, tem de ser resultado de salários altos, de excesso de proteção social, de outros factores de rigidez e, claro, da falta de cultura empreendedora dos desempregados. Para estes vanguardistas do “capitalismo científico”, numa economia totalmente flexível, níveis elevados de desemprego são uma impossibilidade.
Que, décadas depois, a mesma lógica de pensamento que caracterizava o socialismo científico se tenha travestido e passado a caracterizar os arautos de uma estratégia austeritária que, enquanto “limpa” tudo, trará um dia, não se sabe bem quando, novos “amanhãs que cantam” é, ao mesmo tempo, irónico e assustador.
Esta semana, num artigo notável no Financial Times, Martin Wolf reconhecia que “até agora nunca tinha compreendido como é que tinha sido possível o que sucedeu na década de 30”. Agora já percebia. “Tudo o que era necessário eram economias frágeis, um sistema monetário rígido, um debate intenso sobre o que deveria ser feito, a crença de que o sofrimento é bom, políticos míopes, inaptidão para cooperar e incapacidade de estar à frente dos acontecimentos.” Talvez seja a forma mais conseguida de descrever o momento em que nos encontramos. Se a tudo isto juntarmos uma dose significativa de cegueira ideológica, a receita para o colapso parece perfeita.

publicado no Expresso de 9 de Junho 

Vamos ficar mais fracos


Vamos ficar mais fracos
Com a ligeireza que caracteriza as suas intervenções, Miguel Relvas afirmou, esta semana, que iria sair mais forte do caso que o envolve. Veremos. Para já, uma coisa é certa, estamos a ficar colectivamente mais fracos. Relvas pode bem sair reforçado do microciclo político em que opera e que funciona como medida do seu sucesso, mas as instituições da República, o Governo e os media vão ficar mais fracos depois da sucessão de episódios que fomos conhecendo desde o verão passado.
Para lá da degradação política e institucional, há uma revelação particularmente violenta que nos chega com este caso. Temos hoje a certeza que a vida privada dos protagonistas do espaço público, em lugar de ser uma esfera absolutamente inviolável, não só é escrutinada ilegalmente e sem fiscalização efectiva, como circula alegremente em relatórios, numa transumância criminosa de segredos de Estado que não pode ficar impune. Esta violação gratuita do que é uma esfera fundamental das nossas liberdades, se nada mais, faz-nos perder o pouco que restava da nossa inocência colectiva e demonstra até onde pode chegar a dissolução da vida em conjunto.
Ficamos também a saber, se dúvidas tivéssemos, que em Portugal a promiscuidade entre serviço público e interesses empresariais privados não conhece limites. O Estado, em lugar de estar ao serviço do bem comum, é utilizado de forma selectiva por grupos económicos, que se servem dos recursos públicos com a mesma facilidade com que os descartam. A migração de informações das secretas para grupos empresariais é apenas uma versão extrema do sem número de episódios a que assistimos de captura do interesse público por interesses privados – que, depois, nunca hesitam em deslegitimar o papel do Estado.
Mas este longo processo ensina-nos também qualquer coisa sobre os mecanismos de formação de poder em Portugal e de como, mesmo os mais ambiciosos dos políticos, revelam uma estranha imprudência ao longo da caminhada que vão percorrendo até um dia nos governarem. A teia de cumplicidades e de interesses cruzados entre empresas, media e informações tornou-se agora mais transparente. Miguel Relvas é um paradigma duma lógica que, não escolhendo partidos, encontra sempre no PSD um terreno particularmente fértil. É natural que quem se alça ao poder deste modo nunca consiga perceber que um ministro não pode fazer graçolas a propósito dos serviços de informações e, acima de tudo, não lhe é permitido gerir um assunto de Estado como se se tratasse de eleições para uma qualquer concelhia do seu partido. Mudam os governos mas o problema mantém-se: quem faz carreira a contar versões distintas da mesma história consoante o momento e o interlocutor fará o mesmo perante uma comissão parlamentar, independentemente do tema em questão.
Miguel Relvas afirmou que iria sair mais forte deste processo e eu escrevi que estávamos a ficar colectivamente mais fracos. Peço desculpa. Na verdade, já estamos mais fracos.
publicado no Expresso de 2 de Junho

quinta-feira, junho 07, 2012

O Rei-Economista


O primeiro relatório do Conselho de Finanças Públicas deu azo a muitas leituras. Enquanto o Governo se apressou a sublinhar que se tratava de um elogio ao ajustamento orçamental que estava a ser feito, a oposição afirmou que era uma crítica à política do Executivo, que trabalhava com um cenário macroeconómico demasiado optimista e desvalorizava os riscos do aumento do desemprego na despesa. Estamos perante um daqueles casos em que Governo e oposição têm razão – o relatório permite, de facto, várias interpretações – mas, no essencial, os partidos falham o alvo.
O problema não é tanto as conclusões do relatório. Razoáveis, aliás. A questão é a existência de um Conselho desta natureza, que não se inibe de alicerçar os seus juízos num conjunto de princípios que são políticos, mas que finge serem científicos. Vale a pena, a este propósito, recordar o contexto em que surgiu o Conselho.
Durante a negociação do acordo para o Orçamento de 2011, por imposição do PSD, foi criada uma entidade independente, composta por peritos nacionais e internacionais (sic), para analisar a sustentabilidade da política orçamental. A ideia, que tem o fascínio inicial que todas as propostas que visam despolitizar as escolhas sempre revelam, foi acolhida com inegável entusiasmo. Pelo caminho, ninguém se preocupou com a desvalorização da actividade fiscalizadora da Assembleia da República, onde, parece-me, ainda está representado o soberano, e com o facto de já existir uma entidade com funções semelhantes – a Unidade Técnica de Apoio Orçamental, que funciona junto da Comissão de Orçamento e que ganharia em ver a sua capacidade reforçada.
Aberta a porta à ideia de que há uma verdade técnica sobre as opções de política orçamental, o resultado era inevitável. O Conselho transformar-se-ia num actor político, destinado a competir com Governo e partidos. Não surpreende, por isso, que no relatório se apresente um conjunto de apreciações sobre opções fiscais como se de evidências incontestáveis se tratassem ou que sejam feitas considerações de natureza política sobre a natureza dos cortes a efectuar na despesa. O problema é que está longe de existir consenso científico sobre este como sobre todos os assuntos económicos. O que há é muita incerteza que alimenta opções políticas plurais.
Este Conselho vem mostrar que um determinado tipo de economista foi transformado no único indivíduo com real legitimidade para governar – como se, em Economia, houvesse uma verdade que se revelasse aos indivíduos racionais, desde que estejam de boa-fé e na posse dos instrumentos de cálculo adequados. No fundo, o economista ocupa o lugar que Platão desejava para o filósofo – “homens abençoados pela graça e semelhantes a deuses”. Como sabemos, o Rei-Filósofo, movido por um conhecimento assente na relação dialéctica com os princípios puros, está na génese dos ataques às sociedades abertas. Já agora, convém recordar, foi esta visão da economia, alegadamente transformada numa ciência exacta, que nos trouxe até aqui.
 publicado no Expresso de 2 de Junho

As previsões dos porcos-espinhos


Rara é a semana em que os números do desemprego não são revistos em alta, as estimativas para o produto em baixa, enquanto ficamos a saber que a receita fiscal fica abaixo do estimado e a despesa em protecção social acima do esperado. Se há previsão que podemos fazer com segurança é a de que as previsões falham sistematicamente. Movido por esta constatação, Philip Tetlock, professor de Psicologia em Berkeley, procurou perceber a razão para as previsões dos peritos falharem e quais os factores que garantem maior fiabilidade na antecipação dos acontecimentos. Em “Expert Political Judgment”, através de uma análise de 82 mil previsões, em várias áreas, ao longo de 25 anos, chegou a algumas conclusões.
À cabeça, a de que todos podemos ser especialistas – com vantagem, aliás, para a capacidade de prever tendências e antecipar acontecimentos. Senão vejamos: a classificação dos especialistas em torno de dois eixos – capacidade de estimar probabilidades e de anunciar resultados específicos – apresenta resultados muito pouco entusiasmantes. Como sustenta Tetlock, quanto maior o grau de especialização numa determinada área e quanto mais detalhada for a informação sobre um determinado assunto, menor é a capacidade de alguém prever com precisão um evento ou uma tendência nessa mesma área. Parece contraditório, mas a evidência empírica recolhida por Tetlock sugere precisamente que é o excesso de especialização que torna as previsões pouco credíveis.
Neste sentido, e partindo de uma parábola grega popularizada pelo filósofo Isaiah Berlin, Tetlock divide os especialistas em dois tipos: as raposas e os porcos-espinhos. A distinção assenta na ideia de que enquanto as raposas trabalham em várias frentes e procuram olhar para o mundo em toda a sua complexidade, evitando integrar as suas mundivisões num conceito geral unificador, os porcos-espinhos simplificam a realidade através de uma leitura organizadora baseada num conceito unificador, capaz de tudo traduzir em nexos causais lineares. No fundo, a raposa sabe muitas coisas enquanto o porco-espinho sabe uma grande coisa.
É precisamente essa a conclusão de Tetlock: os especialistas nos quais devemos acreditar são os que se aproximam das raposas – capazes da auto-crítica, ecléticos e disponíveis para actualizar as suas crenças face a novos factos. Já os especialistas que tendem a desempenhar pior o papel de cassandras são os que se aproximam dos porcos-espinhos – têm uma grande ideia, normalmente convincente e articulada, mas que aplicam a todos os acontecimentos. Tetlock acrescenta que os media preferem os porcos-espinhos.
Digam lá, era assim tão difícil prever que o desemprego seria bem superior ao previsto e que a receita fiscal teria uma queda mais abrupta do estimado? Não era. Bastava que, em lugar dos porcos-espinhos que monopolizam a ciência económica, com vistas curtas e movidos por obsessões ideológicos, nos fossem oferecidas mais raposas, com a dose justa de cepticismo.
 publicado no Expresso de 26 de Maio.