terça-feira, maio 22, 2012

O século XX recordado

Paira um espectro sobre a Europa – o espectro de Weimar. A combinação de crise económica com desemprego galopante e punição moral imposta desde o exterior está a traduzir-se, como aconteceu na Alemanha nos anos 30, em implosão do sistema partidário, ingovernabilidade e em crise de legitimidade do regime. Para já, o espectro de Weimar parece estar apenas a ensombrar Atenas, mas há boas razões para temermos a sua capacidade de contágio.
Os paralelismos entre a situação grega de hoje e a agonia da democracia liberal nos anos 30 são demasiados para poderem ser ignorados. Quando, no espaço de dois anos, a votação combinada dos dois partidos que governaram a Grécia nas últimas décadas cai de 80% para 33%, 19% dos eleitores votam em partidos que não elegem deputados e os restantes em partidos extremistas, é sinal que estamos na presença de um colapso dos equilíbrios sociais e políticos na base do regime.
Em Weimar, desfeito o consenso entre Estado, patrões e mundo sindical, também o Governo alemão sentiu que só lhe restava impor cortes económicos e sociais brutais. As consequências são conhecidas: o desemprego em massa e a humilhação do Tratado de Versalhes revelaram que a democracia estava impreparada para lidar com a “era das catástrofes”. Na altura, a comunidade internacional assistiu com uma passividade que compara com o modo como hoje encaramos as exigências política e socialmente inviáveis que estão a ser feitas ao povo grego. Ontem como hoje, a depressão social e económica empurrou a democracia liberal para o espartilho dos radicalismos de direita e de esquerda.
Contudo, como nos recorda a história, nunca estamos face a inevitabilidades. A Grande Depressão não colocou fim às democracias liberais em todo o lado. As consequências políticas foram distintas, para dar dois exemplos, nos EUA (com o New Deal do Presidente Roosevelt) e na Suécia (com o triunfo da social-democracia como ‘casa do povo’, do primeiro-ministro Per Hansson). O que nos serve para recordar que há sempre margem de manobra política e que o modo como é utilizada está longe de ser irrelevante.
Hoje, perante a catástrofe social e as consequências políticas que eram previsíveis, resta saber se a Grécia funcionará como vacina, obrigando a mudanças na Europa que impeçam o contágio e a dissolução dos sistemas partidários como os conhecemos, ou se, pelo contrário, estamos face ao início de uma epidemia que acabará por alastrar a toda a Europa, partindo das periferias, mas atingindo também o centro. Está nas mãos dos governos europeus escolher. Até agora têm cometido demasiados erros e, pior, têm insistido na trajectória falhada que ameaça os regimes.
Estamos a viver um momento crucial para a Europa e convém recordar lições da História que não devem ser esquecidas. A primeira das quais é que “não podemos ser inocentes outra vez” e pensar que a irracionalidade e o mal absoluto não são ameaças que estão sempre ao virar da esquina.

publicado no Expresso de dia 12 de Maio

domingo, maio 20, 2012

Comentário ao caso Relvas vs Público na SIC-N

quarta-feira, maio 16, 2012

E se nada mudar?

É-nos dito repetidamente que a incapacidade europeia para responder à crise se explica por termos uma maioria, quase hegemónica, de governos de direita. Removidos do poder estes governos, o problema resolver-se-ia. Neste sentido, a vitória de Hollande inauguraria uma nova esperança. A eleição de um Presidente socialista em Paris pode fazer alguma diferença, mas não vejo motivos para estarmos optimistas quanto ao início de uma recomposição política na Europa. Até ver, o centro esquerda não tem um programa alternativo perceptível e aplicável, enquanto a direita assenta a sua afirmação numa narrativa coerente que se traduz numa prática política clara.
 Para os partidos da direita, a crise é fruto de comportamentos morais negativos (povos com uma inclinação para a indolência e com níveis de produtividade baixos), reforçados por incentivos perversos das políticas públicas (países que se habituaram a viver acima das suas possibilidades e Estados sociais muito pesados e que premiaram atitudes erradas). Perante esta narrativa, que, no seu simplismo, se tem revelado politicamente apelativa, a resposta passa por contrariar os comportamentos individuais (por exemplo, acabando com feriados e promovendo a desvalorização salarial) e diminuir a presença do Estado (designadamente nas áreas sociais). As consequências da estratégia seguida um pouco por toda a Europa estão à vista: o estrangulamento das políticas públicas não se tem traduzido em equilíbrio orçamental e as doses sucessivas de austeridade não só têm provocado uma espiral recessiva como têm agravado a natureza sistémica da crise.
Apesar deste contexto, o centro-esquerda ainda não conseguiu desenvolver uma leitura partilhada da crise e articulá-la com uma resposta política coerente. Não há sinais de que Hollande seja capaz de responder a estes dois desafios.
Há, antes de mais, um problema estrutural. A esquerda democrática encontra-se em declínio ideológico porque ou foi incapaz de se readaptar a um contexto económico, social e demográfico muito diferente do do seu apogeu ou, quando o fez, como com a Terceira Via, teve os resultados conhecidos. Convém não esquecer que a crise que hoje enfrentamos resulta de uma arquitectura institucional da zona euro desenhada quando a maioria dos países europeus era governada por partidos social-democratas.
Hoje, o que o centro-esquerda tem para oferecer, desde a França com Hollande a Portugal com Seguro, é apenas um acto adicional ao estrangulamento político europeu. Talvez nenhum outro acontecimento cristalize esta dificuldade como a discussão em torno do Tratado de Estabilidade. Perante um conjunto de disposições que representa uma capitulação política da social-democracia, o que nos é proposto é mantê-las e juntar-lhes uma aposta no crescimento, que nunca se percebe bem em que instrumentos assentará. Hollande alterará o clima político e funcionará como um contrapeso. Espero estar enganado, mas, para além disso, pouco mudará.
 publicado no Expresso de 5 de Maio

sábado, maio 12, 2012

Comentário ao debate quinzenal SIC-N

segunda-feira, maio 07, 2012

Até aqui, tudo bem

Num conhecido filme francês da década de noventa, “O Ódio”, é-nos contada a história de um homem lançado do 50º andar de um arranha-céus e que para se reconfortar, enquanto cai, vai repetindo, como num mantra, “até aqui, tudo bem” – para logo concluir que o que importa não é a queda, mas, sim, a aterragem. Se pensarmos no que se anuncia economicamente, somos esse mesmo homem. Na semana passada, o FMI reviu em baixa, uma vez mais, o cenário macroeconómico para Portugal e o problema não são propriamente os valores para 2012 – já previsivelmente maus –, mas o que se prevê para os anos seguintes, os tais do suposto “crescimento económico robusto” que se seguiria às reformas estruturais. Depois da queda do produto em 3,3% prevista para este ano, a nossa economia crescerá 2,1% em 2104, para começar a crescer menos logo a seguir, baixando para 1,5% em 2017. A tomar como bom este cenário, uma coisa resulta clara: os níveis de desemprego manter-se-ão muito elevados. Não vale a pena iludir os constrangimentos financeiros que enfrentamos, mas convém ter consciência clara de que, como bem referiu Assunção Esteves no discurso das comemorações do 25 de Abril, “a democracia tem hoje a sua prova de fogo no bem-estar social e económico”. É uma ilusão pensar que tudo se manterá igual no sistema político com um período longo em que o comportamento da economia alterna entre o anémico e a recessão. Pura e simplesmente, o amor do povo pela liberdade não será suficiente para que daqui, por exemplo, a quatro anos, os portugueses se dirijam ordeiramente e em massa às urnas para depositar o seu voto nos partidos em que necessariamente deixarão de confiar. A queda que vivemos começou por ser financeira, económica e social, mas a aterragem será inevitavelmente política e colocará em causa o regime. Como nos ensina a história europeia, a legitimidade dos regimes democráticos depende do pluralismo e da defesa do Estado de direito, mas estes valores só são politicamente sustentáveis se se alicerçarem em níveis de bem-estar suficientes, que funcionem como cimento das relações sociais. A questão não é apenas de privação material hoje, é também o modo como o regime gere expectativas sociais. Em “A classe média: ascensão e queda”, Elísio Estanque escreve que “enquanto numa trajectória ascensional se tende a antecipar a condição de chegada, na situação inversa procura-se a toda o custo negar a realidade, mesmo quando já se mergulhou nela até ao pescoço”. Ou seja, enquanto nas trajectórias ascendentes as expectativas vão sempre um passo à frente da posição individual, perante um fim abrupto desse percurso, a intensidade da frustração dispara, mas ao retardador. Um pouco como no filme de Mathieu Kassovitz: quando caímos, como agora acontece, primeiro negamos a sensação de perda, para depois chocarmos com a dura realidade da desilusão. Só então perceberemos que a solução para a crise deveria ter sido outra. Pode ser, contudo, demasiado tarde. publicado no Expresso de 28 de Abril.

quarta-feira, maio 02, 2012

Causas da nossa decadência política

O Governo anterior teve uma estratégia de investimento e inovações graduais e falhou; este Governo tem uma estratégia de desinvestimento e de reformas abruptas e vai falhar. Ainda que com simplismo e alguma futurologia, a nossa história política recente pode ser resumida assim. Independentemente das opções substantivas que cada Governo toma, está condenado ao fracasso. O que talvez sirva para sugerir que o nosso problema não é tanto com o que fazemos, mas com a forma como fazemos. De um coisa não restam dúvidas: há países que fizeram opções mais estatistas com muito sucesso (os escandinavos), do mesmo modo que há países que apostaram na coordenação e são hoje exemplos (a Alemanha) e, se procurarmos bem, também há soluções desregulamentadoras que apresentam resultados positivos. O que não é possível encontrar são casos virtuosos assentes em más práticas institucionais e processos decisórios arbitrários e pouco planeados. Repare-se nestes dois exemplos das últimas semanas. Para averiguar se as queixas dos utentes eram justas, o Secretário de Estado dos Transportes foi andar de metro em Lisboa e terá verificado in loco que existia um défice de carruagens na linha verde. Perante a constatação, baseada numa amostra representativa de uma viagem de metro de um membro do Governo, decidiu “reforçar a oferta”. Há uns quantos dias, o país descobriu que as reformas antecipadas haviam sido suspensas, através de uma decisão clandestina. Num caso como no outro, não está em causa o conteúdo da decisão do Governo. É bem provável que fosse necessário reforçar a oferta no metro e pode fazer sentido colocar termo ao regime excepcional que possibilita a aposentação antes do tempo, com penalizações muito significativas. O que é desastroso é o modo como as decisões foram tomadas. Quando se esperavam decisões estratégicas assentes em informação partilhada (estudos sobre tráfego no metro e recursos disponíveis) ou num planeamento a médio prazo (PEC, OE 2012 e Acordos de Concertação), o que nos é oferecido são decisões baseadas em impressões subjectivas e não previsíveis. Perante a incerteza, os países tendem a encontrar refúgio nas práticas a que estão habituados. No fundo é isso que Portugal faz: reproduz sistematicamente o seu falhanço institucional. As decisões do Governo sobre o tráfego no metro ou sobre as reformas antecipadas não são desastrosas por serem mais de direita ou mais de esquerda, mais liberais ou mais estatistas, mas porque assentam em impressões e na ausência de planeamento. Esta semana, Vítor Gaspar afirmou que “Portugal oferece uma lição de moral a todos aqueles que defendem o aumento da despesa pública”. O ministro está errado. A lição de Portugal não é nem moral, nem se prende com opções substantivas. A lição que o nosso país tem para oferecer é sobre o modo como a fraca qualidade das decisões tem um efeito devastador. E não há meio de aprendermos. publicado no Expresso de 21 de Abril