domingo, julho 29, 2012

De surpresa em surpresa

Basta recuarmos um ano para recordarmos as loas que eram tecidas ao memorando de entendimento. A troika, foi-nos dito, apresentava-nos o programa com as reformas estruturais que o país esperava há décadas. Por cá, num momento em que o patriotismo atingiu mínimos históricos, faziam-se sentir ondas de júbilo com o regresso dos salvíficos homens de negro. Um ano passado, chega a ser penoso assistir à troika a avaliar-se a si própria, tentando salvar a face perante uma solução que está a falhar.
O último relatório do FMI é exemplar da estratégia em curso. Colocada a Grécia de quarentena, Portugal tem de ser oferecido como exemplo de sucesso, dê por onde der: a aplicação do memorando é avaliada positivamente, mesmo que a execução orçamental esteja a falhar, o mercado de trabalho se afunde e ninguém faça ideia de como atingir as metas do défice para este ano e, pior, para o próximo. Até porque uma coisa é a realidade, outra a narrativa. E esta é simples.
Na Grécia a ‘austeridade expansionista’ não funciona porque as instituições são débeis, os políticos não se empenharam no cumprimento do acordado e o povo é ingovernável. Já Portugal é uma outra história: o Governo é liderado por um ministro das Finanças sem reservas ideológicas face à receita, o primeiro-ministro quer mesmo, veja-se bem, “ir além da troika” e, sob pano de fundo, temos paz social. Perante isto, o memorando não poderia mesmo falhar.
            Tendo em conta que a culpa é da realidade e não do plano traçado, à troika só resta reforçar a dose aplicada. O desemprego cresce? Leve-se mais longe a reforma do mercado de trabalho e continue-se a baixar salários, acelerando o colapso da procura interna. As empresas estão sufocadas? Reduza-se a taxa social única, desequilibrando ainda mais o orçamento da segurança social. Os cortes nos subsídios são inconstitucionais? Encontre-se equivalentes do lado da despesa, talvez desmantelando o serviço nacional de saúde ou a escola pública.
Enquanto a realidade não se conforma com os seus pressupostos, os peritos que nos governam vão revelando a sua surpresa. Depois do ministro Gaspar ter declarado pausadamente que “não compreendia o que se estava a passar no mercado de trabalho”, esta semana o responsável do FMI declarou que “tinha sido uma surpresa a inconstitucionalidade dos cortes nos subsídios”. Perante tanta surpresa, não devíamos também nós avaliar a troika e a suas soluções? Afinal, o modelo que têm na cabeça não previa nada do que tem estado a acontecer e continuam incapazes de reconhecer que o agravamento da situação é também efeito das suas políticas.
Silva Peneda, um oásis de bom-senso entre as figuras institucionais portuguesas, afirmou esta semana na SIC-N que “não era de surpreender, para quem conhecesse a realidade da economia, que isto ia acontecer”, para logo acrescentar que, não havendo ajustamento sem dor, sentia uma inquietação: “pode haver dor e não haver ajustamento”. Ora aí está uma coisa que nos tem faltado: políticos com realismo, capazes de travar os radicalismos ideológicos que nos governam.
publicado no Expresso de 21 de Julho.

quinta-feira, julho 19, 2012

O que fazer quando tudo falha?


Como todos sabemos, há poucas coisas tão difíceis de lidar como com o nosso fracasso individual. Demoramos a perceber que falhámos e ainda mais a reconhecer os motivos do falhanço. Até nos reerguermos e tentarmos de novo, precisamos de nos consciencializar que as coisas correram mal e foram diferentes do que imaginávamos. Com a política não é diferente. Ninguém lida bem com o fracasso das suas escolhas e, naturalmente, recusa aceitar os erros.
Se olharmos para a história da política portuguesa dos últimos tempos ficamos com a sensação de que assenta numa recusa: ninguém quer reconhecer o falhanço. Mais um falhanço.
Afinal, apenas há um ano os portugueses escolhiam esmagadoramente dois partidos que anunciavam uma nova esperança com uma solução mirífica para os nossos problemas colectivos, que não implicava mais sacrifícios. Depois, foi-nos apresentado um governo enxuto, onde se destacava um ministro das Finanças com um perfil técnico inabalável, que oferecia competência e rigor, coadjuvado por um conjunto de personalidades com uma credibilidade pessoal à prova de bala. Para além do mais, este governo não estava sozinho, tinha como pano de fundo da sua acção, era-nos dito, um documento de trabalho extraordinário – o memorando de entendimento. Um programa político que nos foi apresentado como não tendo paralelo na nossa democracia. Em poucas semanas, meia dúzia de peritos estrangeiros conseguiu fazer o que gerações de políticos portugueses não haviam feito: traçar um mapa das reformas estruturais que o país aguardava há décadas. 
Como é que é possível estarmos hoje como estamos? Os sacrifícios, ao contrário do prometido, tornaram-se uma realidade, com cortes de pensões e salários, aumento de impostos (confisco fiscal, para usar a expressão tantas vezes utilizada no passado) e desemprego galopante; os casos Relvas não só transformaram os incidentes do passado numa miragem distante, como contaminaram todo o governo e em especial o seu irmão de percurso de poder, Passos Coelho; o governo enxuto não dá conta do recado e o ministro competente falha todas as previsões e não consegue controlar a execução orçamental; finalmente, a troika vai-se avaliando a si própria e insiste que está tudo bem, para depois ser rapidamente desmentida pela execução orçamental. Enquanto isso, à volta, na Europa, tudo arde.
Mas uma coisa é o falhanço de facto, outra bem diferente é colectivamente admitirmos esse falhanço. Há, naturalmente, uma dificuldade individual em reconhecermos que as coisas correram ao contrário do que esperávamos. Mas há uma outra dimensão bem mais preocupante: não aceitamos o falhanço porque não sabemos como poderia ter sido diferente e de que modo poderão as coisas mudar no futuro imediato. Enquanto este bloqueio não for ultrapassado, continuaremos a querer acreditar que Passos Coelho sabe o que está a fazer, que Vítor Gaspar é competente e que a solução da troika um dia funcionará. Temos de nos agarrar a qualquer coisa, pois, sabemos bem, lidar com as desilusões é bem mais difícil do que com os sucessos.
 publicado no Expresso de 14 de Julho

quarta-feira, julho 18, 2012

A culpa é do Constitucional


Primeiro foram os malandros do rendimento mínimo, mas não falei por não ser pobre. Depois, perseguiram os pensionistas. Nada disse então, por não ser velho. Em seguida, castigaram os funcionários públicos. Decidi não falar porque não sou funcionário público. Então, um dia, vieram tirar-me o meu subsídio de férias. Por essa altura, já não restava nenhuma voz que, em meu nome, se fizesse ouvir. O conhecido poema de Martin Niemoller, escrito num contexto brutal que nada tem a ver com a nossa realidade, é ainda assim uma boa metáfora para os riscos da ação política baseada na exploração do ressentimento.
Quando, no Orçamento de 2012, o governo optou por discriminar negativamente os pensionistas e os funcionários públicos, a estratégia tinha um objectivo: colocar trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos. No fundo, a ideia era simples e passava por dar corpo ao sentimento difuso de que os funcionários públicos são uns preguiçosos com emprego protegido. Contudo, como quase sempre acontece com as ideias populistas, o que parece ter um fascínio inicial encarrega-se de trazer complicações sérias mais tarde. Essas complicações acabam de chegar com o acórdão do Tribunal Constitucional.
Pouco mais de meio ano passado de execução orçamental, aconteceu o previsível. A austeridade só teve como consequência desequilibrar ainda mais as contas públicas e a solução que resta é, pasme-se, agravar a dose. Para o ano, o que nos espera é igualdade de tratamento. O que foi regra este ano para os funcionários públicos e pensionistas será aplicado ao conjunto dos trabalhadores, avisou com celeridade o primeiro-ministro com assinalável sentido de Estado, à porta do teatro.
Como é sabido, os nossos políticos são especialistas em encontrar desculpas para as suas próprias decisões. Se até agora a troika foi o passa-culpas por excelência do nosso governo, de uma coisa poderemos ter a certeza: perante um falhanço colossal na execução orçamental, o que até aqui era responsabilidade da troika passará a ser culpa do Tribunal Constitucional. Cortaram-se subsídios de férias e Natal por causa da troika, aumentar-se-ão os impostos para todos por decisão de um conjunto de juízes. O que era uma inevitabilidade resultante de uma estratégia catastrófica de Vítor Gaspar passará a ser uma requisito formal. Do mesmo modo que o que era um falhanço do governo, o prolongamento do programa de austeridade, passará a ser uma vitória, devidamente caucionada pelo líder da oposição – que ficará sem a pequena dose de discurso que lhe resta.
Num país que tanto gosta de mimetizar os exemplos estrangeiros, talvez valesse a pena atentar no que se passou com o programa de financiamento à Letónia. Num país que foi alvo de uma das primeiras experiências laboratoriais da “austeridade expansionista”, perante um chumbo constitucional de cortes nas pensões, o FMI não exigiu a introdução de novas medidas e aceitou renegociar os valores do défice. Era o que o governo português devia estar a fazer neste momento. Em lugar de nos ameaçar com mais um aumento de impostos, a somar a tudo o resto.

publicado no Expresso de 7 de Julho 

Por favor, não toquem no futebol


Em Portugal há uma verdadeira obsessão: tudo tem de ser repensado profundamente e sujeito a reformas estruturais. Da saúde à segurança social, passando pelo que resta da indústria, qualquer estratégia que assente em alterações cirúrgicas está excluída à partida. Temos um fascínio pelos grandes planos que só encontra paralelo na incapacidade de consolidar soluções e monitorizar resultados. É de tal modo que mesmo o que funciona bem não escapa a esta fúria reformista.
O futebol não é exceção. Não passam muitos dias sem que apareça alguém a reclamar por uma reforma do futebol português, que supostamente precisa de ser repensado. Em linguagem futebolística, fala-se de coisas como “apostar no projecto”, que, como é sabido, tem no Sporting um exemplo de manual.
Enquanto adepto de bancada, com anos e anos de lugar cativo, tenho um pedido a fazer: por favor, não toquem no futebol português. Não o reformem, não o repensem, não alterem o modelo entre o caótico e o espontâneo que tem funcionado nos últimos anos e, acima de tudo, protejam a modalidade da fúria transformadora dos que se apresentam com “grandes reformas”.
Os resultados estão aí para demonstrar como o futebol tal como tem existido é um caso de sucesso, sem comparação, entre nós, com quase nenhuma outra atividade (talvez só com esse outro estranho fenómeno nacional que é a produção poética) e que precisa de ser preservado intacto.
Torna-se difícil perceber como é que um país sem cultura de desporto de alta competição, com apenas 132 mil atletas federados (que comparam com os mais de seis milhões da Alemanha, os mais de um milhão e meio da Itália ou os 650 mil de Espanha), não só se qualifica sucessivamente para finais de competições europeias como concretiza uma impossibilidade teórica: alcança uma final e várias semi-finais. A única explicação é um acaso cósmico que fez com que talentos individuais coexistissem no espaço e no tempo, sem grande planificação. Convém ter consciência que isto não vai durar para sempre. Aliás, estamos a ficar muito mal habituados.
Pense-se no exemplo de Paulo Bento. Com extraordinária casmurrice, conseguiu operar um milagre: resgatou um grupo de rapazes moribundos das mãos do Professor Queiroz, qualificou-nos e, depois, mesmo com três ou quatro jogadores abaixo de medianos e na ausência de alternativas, formou uma equipa, apoiada num prodígio (Ronaldo) acompanhado por quatro jogadores de classe mundial (Coentrão, Pepe, Moutinho e Nani), devidamente coadjuvados por mais três bons rapazes.
Mas também o trabalho dos clubes é notável. Com recursos que comparam mal com os colossos europeus, têm importado matéria-prima de mercados longínquos, para depois lhe acrescentar valor e exportar com mais valias assinaláveis. O Benfica e o Porto dos últimos anos podem ser apresentados como casos de sucesso neste tipo de especialização produtiva que aposta nos bens transacionáveis e fá-lo com independência do Estado.
Pensando bem, o futebol português não tem apenas de ser protegido da fúria reformista, pode mesmo funcionar como exemplo para o resto do país.

publicado no Expresso de 30 de Junho

segunda-feira, julho 02, 2012

E, de repente, nada muda


Quando, há um par de anos, Manuela Ferreira Leite sugeriu, sobre um manto de ironia, a suspensão temporária da democracia, a provocação gerou um enorme clamor. Hoje, um pouco por toda a Europa, entre Governos removidos, primeiros-ministros depostos e tranquilamente substituídos por tecnocratas e constituições violadas perante a passividade geral, a questão que se coloca já não é apenas a suspensão da democracia, é também a sua irrelevância.
A Grécia é o último exemplo. Se pensarmos bem, nos últimos meses a Europa viveu com ansiedade as eleições gregas. Era-nos dito que as escolhas dos gregos determinariam o futuro do euro. Mas, como descobriremos rapidamente, ultrapassada a questão da governabilidade na Grécia, nada mudará e os problemas não só continuarão a pairar como, aliás, tenderão a agravar-se.
Este optimismo, que nos faz crer que uma solução eleitoral na Grécia era o início do caminho salvífico e definitivo que todos esperamos, assenta num equívoco profundo. O problema que a Europa enfrenta não é político, na medida em que, no essencial, não radica na incapacidade dos partidos ou dos seus dirigentes para governarem. Pensando no caso grego, o que temos é um problema financeiro, económico e social que não poderia deixar de se traduzir numa crise eleitoral, agravada por uma cultura política preexistente com inclinação para a instabilidade. Ora, como é evidente, não apenas a solução que tem sido imposta aos gregos é, em democracia, politicamente inviável, como, é já hoje manifesto, a Grécia sozinha não será capaz de superar a crise que enfrenta. As eleições gregas acabarão por se revelar irrelevantes.
Tudo isto serve também para recordar que a democracia funciona em dois sentidos. Enquanto nos países sob resgate os eleitorados vão sendo empurrados para uma escolha entre a rejeição das medidas de austeridade e uma crença de que a aplicação de uma terapia de choque, um dia, dará frutos, nos restantes países o dilema dos eleitorados é entre o aprofundar da solidariedade europeia, sem que esta se traduza em ganhos palpáveis no imediato, e uma estratégia que protege os seus interesses nacionais de curto prazo. Como é evidente, a escolha não é simples e revela a descoincidência profunda que hoje existe entre os europeus, determinada, no fundo, pelo lugar onde votam.
Sendo a realização periódica de eleições uma das características das democracias, o mais natural é que, em toda a Europa, assistamos ao reforço da divisão entre os eleitorados. Uma divisão que se traduzirá num afastamento das posições políticas, já hoje polarizadas, dos governantes europeus. A Grécia, que tem funcionado como um indicador avançado do que vem a acontecer, deveria servir para retirarmos uma lição: as eleições não só não vão resolver o problema europeu, como o mais provável é acentuarem clivagens entre eleitorados, empurrando os vários governos não para uma mudança de políticas, mas para um acentuar das estratégias que têm prosseguido. No fundo, nada muda.


publicado no Expresso de 21 de Junho