segunda-feira, outubro 14, 2013

Uma culpa constitucional


Há uns meses, um documento da J. P. Morgan sobre o ajustamento na zona euro não hesitava em sublinhar que os sistemas políticos nos países da periferia foram “estabelecidos na sequência das ditaduras e definidos por essa experiência. As constituições tendem a ter uma influência socialista forte, refletindo a força política que os partidos de esquerda conquistaram após a derrota do fascismo". Para depois concluir, com uma candura assustadora, que estes países tiveram um sucesso apenas parcial nas suas reformas orçamental e económica, sendo apontados, no exemplo português, os “constrangimentos” impostos  pela Constituição, que, entre outras malfeitorias, protege os direitos laborais e concede o direito a protestar caso mudanças indesejadas ocorram no status quo político (sic).
É ao mesmo tempo surpreendente que haja quem se dedique a análises que assentam na descoberta peregrina de que os momentos fundacionais dos regimes são histórica e politicamente contingentes (será possível compreender a Constituição norte-americana sem ter em conta a experiência colonial britânica?) e que faça uma leitura pueril dos bloqueios económicos e financeiros que os países da zona euro enfrentam. Poderia ser apenas enternecedor mas, como se vê pela discussão que continua a decorrer em Portugal, são argumentos que devem mesmo ser levados a sério.
Na verdade, as sete revisões constitucionais ocorridas desde a transição para a democracia já expurgaram a influência material socialista do texto fundamental e não há nenhum bloqueio sério à reforma do nosso Estado Social alicerçado na Constituição, como aliás é provado pela jurisprudência do Tribunal. Estamos, na verdade, perante desculpas que servem para desresponsabilizar o Governo e a Europa pela sua negação da natureza da crise e incompetência para encontrar respostas eficazes aos problemas que enfrentamos.
Se nos cingirmos ao conjunto de acórdãos do Tribunal Constitucional que declararam a inconstitucionalidade de medidas apresentadas pelo Governo, a questão é ainda mais clara. Os chumbos do TC não se devem a nenhuma pretensa idiossincrasia socialista da Constituição, pelo contrário, radicam em princípios que fazem parte de todas as constituições das democracias ocidentais – igualdade, proporcionalidade e segurança jurídica.
Numa altura em que se voltou a falar de um novo resgate, e foram afastados os eufemismos utilizados durante um par de meses (“pós-troika”; programa cautelar), não deixa de ser revelador que se procure fazer da Constituição ou, na versão alucinada do primeiro-ministro, da falta de “bom-senso” dos juízes do TC, a causa para o falhanço do programa de ajustamento. Infelizmente, o problema é sempre o mesmo: estamos perante uma estratégia que não funciona nem pode funcionar. A Constituição não passa do último dos bodes expiatórios mobilizados pelos arquitetos intelectuais da estratégia austeritária em curso (as J.P. Morgan deste mundo) e pelos seus diligentes implementadores, do inenarrável Dijsselbloem no Eurogrupo ao primeiro-ministro que nos coube em sorte.

publicado no Expresso de 7 de Setembro