domingo, novembro 10, 2013

Quem nos defende?


Portugal está sob ameaça. Ameaça financeira, económica, social, mas, também, política. Se dúvidas restassem, as declarações do Presidente da Comissão Europeia, que dá-se o caso de ser português, a propósito de um eventual chumbo do orçamento de Estado pelo Tribunal Constitucional, estão aí para o provar. Um país sob ameaça precisa de quem o defenda.
Vale a pena recuperar o que nos foi dito por José Manuel Barroso. Em primeiro lugar que a Comissão Europeia “nunca criticou o TC” (uma manifesta falsidade), mas que tem o direito de alertar para “as implicações de determinadas decisões” e, em segundo lugar, que, se o orçamento for chumbado, as medidas terão de ser substituídas “por outras medidas, provavelmente mais gravosas” (sic).
Registe-se bem. Não estamos apenas a falar de novas medidas que acomodem orçamentalmente um eventual chumbo. A ameaça de Barroso é de outra natureza: caso algumas normas do orçamento venham a ser chumbadas, em troca teremos medidas mais gravosas.
No fundo, trata-se do recurso à mesma lógica punitiva que nos tem acompanhado desde o início da crise. Para Barroso, o TC é livre de agir como bem lhe aprouver, mas caso decida em sentido contrário à sua vontade, os portugueses serão devidamente castigados. Como os bons espíritos maoístas se encontram sempre, nesta mesma semana ao ministro Nuno Crato não lhe ocorreu melhor metáfora do que sugerir que os portugueses teriam de "trabalhar mais de um ano sem comer só para pagar a dívida". Há, de facto, linguagem que não engana.
Deixemos de lado os benefícios associados ao chumbo de normas do OE em 2013, que, não se têm cansado de repetir Ferreira Leite e Bagão Félix, ajudaram ao comportamento menos recessivo da economia na segunda metade do ano, ou, não menos relevante, o facto de não terem tido por base nenhuma idiossincrasia da nossa Constituição, mas princípios que estão plasmados em todas as leis fundamentais do mundo ocidental (igualdade; proporcionalidade e confiança jurídica) e fixemo-nos na utilização instrumental que é feita do Tribunal Constitucional.
Enquanto nos vai dizendo que não há alternativa à estratégia seguida, este Governo não se cansa de defender que a margem de negociação com a troika é inexistente. Na funesta expressão de Paulo Portas, que, convém recordar, faz parte de um Governo sufragado pelo soberano, “somos um protetorado” (logo, uma espécie de França de Vichy). Ora o que estas declarações encomendadas a Barroso sugerem, mais uma vez, é que há um manifesto ativismo do Governo na frente externa, mas invariavelmente no sentido de pôr a troika a fazer de câmara de eco das suas pretensões. O Governo não negoceia porque o seu propósito é outro: utilizar a troika para reforçar as suas capacidades políticas em Portugal. Somos um protetorado na medida em que é essa a ambição política de quem nos governa.
Quando precisávamos de alguém que defendesse a nossa soberania, temos um Governo que se passeia de bandeirinha na lapela. Que o Tribunal Constitucional seja o nosso derradeiro recurso de soberania é bem sintomático da tragédia política que vivemos.
 publicado no Expresso de 9 de Novembro

O Grande Teste


Os indícios de que o Benfica está em franca recuperação são notórios. É evidente que as três vitórias consecutivas para o campeonato são um marco importante, mas nem sequer é o aspecto mais relevante. O que explica as melhorias visíveis do Benfica é um regresso, paulatino mas seguro, do que foram os alicerces da temporada passada.
Acima de tudo, a estabilização do eixo Enzo-Matic como solução prioritária para o meio-campo. Depois de algum experimentalismo, o recurso à dupla de centro campistas de 2012/13 devolveu o Benfica a rotinas já conhecidas.
Não menos importante, na ausência de Sálvio, a melhoria de forma de Gaitán permitiu à equipa reganhar velocidade. Mesmo jogando a espaços, as diagonais do argentino facilitam a vida aos pontas-de-lança. Neste momento, fica só a faltar um segundo jogador a fazer o mesmo, vindo do outro extremo – um papel que pode ser de Markovic. Com um duplo pivot a marcar o ritmo da equipa e a ocupar bem os espaços no centro do terreno, estão reunidas as condições para Gaitán/Markovic surgirem na frente, das laterais para o meio.
Com um meio-campo a conferir solidez e dois criativos rápidos, não só a falsa questão de precisarmos de um “10” que organize o jogo fica resolvida, como está criado o contexto ideal para (re)surgir o Cardozo de sempre. A este propósito, não deixa de ser curioso saber onde é que andam todos aqueles que diziam que a reintegração do paraguaio era uma impossibilidade. Ora, não só o Tacuara tem revelado a eficácia costumeira, como até do ponto de vista anímico parece ser dos jogadores que melhor ultrapassou o trauma do fim da época passada.
Mas se os últimos jogos têm deixado melhores impressões, para a tendência se consolidar é importante saber como é que o Benfica vai ultrapassar o mês de Novembro. A coincidência de ao jogo de hoje para a Champions se sucederem dois outros jogos decisivos, em duas frentes diferentes (Sporting para a Taça e Braga para o campeonato), vai ser a prova dos nove. Se passarmos este grande teste, há boas razões para estarmos optimistas em relação ao futuro.
 publicado no Record de 5 de Novembro

O Estado paralelo


Se fizermos o exercício exigente de procurar racionalidade na ação deste Governo, talvez seja possível identificar dois momentos no processo de “reforma” do Estado. Num primeiro, o objectivo essencial era deslegitimar a ação do Estado, tornando-a crescentemente ineficaz; num segundo, com um contexto mais propício ao seu desmantelamento, ficaria aberta a porta à criação de novos mercados - na saúde, educação e segurança social.
Num primeiro momento, não era necessário guião nenhum. De facto, só quem pretende construir alguma coisa precisa de um guia que indique o caminho; como é sabido, para destruir não são necessárias instruções. Um pouco como quando construímos um LEGO. Apenas com instruções as peças fazem sentido e somos capazes de visualizar o resultado final, mas  quem tenha visto uma criança a desmanchar um LEGO sabe bem que, nessa altura, o manual de instruções é desnecessário.
Foi isso mesmo que se fez nos últimos dois anos. Cortes sem critério e total paralisia de sectores fundamentais do Estado, nomeadamente da administração central. Com consequências conhecidas: a confiança dos cidadãos no Estado desapareceu e, não menos importante, acelerou-se como nunca o processo de degradação do saber instalado na administração pública. Com um Estado deslegitimado e descapitalizado, ficámos todos mais frágeis.
Mas se um LEGO destruído é, desde que tenhamos o guião certo, reconstruível, já a confiança e a capacidade institucional são irrecuperáveis. Uma vez destruídas torna-se muito difícil reconstruí-las.
E assim chegámos ao segundo momento. Entre a indigência intelectual e política que marcam o guião apresentado por Paulo Portas (que provoca vergonha alheia), emerge uma ideia paradoxal. O mesmo Governo que prometeu combater o “Estado paralelo” tem como objectivo criar um universo de mercados, dependentes do Orçamento de Estado, que passaria a prestar serviços até aqui assegurados pelo Estado.
Estamos perante uma proposta de reforma que visa, de facto, fazer crescer exponencialmente o Estado paralelo. Da saúde à educação, passando pela segurança social, a ideia é sempre a mesma: contratualização de serviços públicos com privados, assegurando o financiamento público de negócios privados.
Esse Estado paralelo já existe hoje em Portugal e o que o caracteriza é a pouca transparência e a ausência de regulação e escrutínio. Sabemos que, nas funções sociais, todos os anos são transferidos do Estado para entidades (para)privadas milhões de euros. Mas sabemos pouco sobre a eficiência com que os recursos são aplicados, o controlo das contas é menor do que na administração pública e a gestão dos recursos humanos assenta em princípios demasiado flexíveis.
Para início de conversa em torno da reforma do Estado, talvez valesse a pena fazer uma avaliação rigorosa do que se passa neste Estado paralelo –formado por escolas, creches, lares e hospitais geridos privadamente mas financiados por recursos públicos. Mas pedir estudo, avaliação e rigor a este Governo é, objectivamente, exigir de mais.
 publicado no Expresso de 2 de Novembro



Regressados ao escudo


Não é preciso procurar muito para encontrarmos descrições feitas há uns quatro anos sobre as implicações de Portugal abandonar o euro. No início da crise das dívidas soberanas, era-nos dito que um regresso ao escudo teria custos brutais e corresponderia a perdas nos salários e nas pensões na ordem dos 30%. Lidos retrospectivamente, esses cenários chegam a ser comoventes.
Não me parece política, social e economicamente viável uma saída do euro. Aliás, o drama que enfrentamos é precisamente esse: o euro é uma armadilha da qual não há libertação possível. Uma vez entrado, não mais se sai. Convenhamos que estamos face a um dilema insuperável: Portugal não pode ficar no euro, mas também não pode sair do euro. Se a permanência na união monetária, com as atuais regras, torna a nossa dívida, de facto, insustentável, uma saída será tudo menos ordenada e trará consigo um cenário de caos, que ninguém é capaz de antecipar.
Não deixa, no entanto, de ser sintomático que, no já distante ano de 2009, quando os contornos do que estaria para vir eram ainda indefinidos, nos fosse dito que não podíamos abandonar a moeda única porque tal implicaria perdas salariais politicamente inviáveis. Estávamos na altura em que, como disse Cavaco Silva, havia “limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos". O que é que se passou entretanto?
Portugal empobreceu muito, mas nem todos empobreceram. Desde 2010, altura em que a Europa de facto mudou, até 2014, a redução de rendimento médio real na função pública será de 25%; no sector privado cerca de 20% e para os pensionistas entre 25 e 35%, consoante falemos do regime geral ou da CGA. Já agora, convém recordar, os salários foram cortados, entre outros motivos, para garantir que o emprego fosse sustentável. Ora, de uma taxa de desemprego de 10,8% em 2010 passámos para uma que se estima seja, em 2013, de 17,4%. Ao que acresce que não só o número de desempregados aumentou brutalmente, como a percentagem de desempregados protegidos tem diminuído muito e continuará a diminuir. Em Agosto, de um total de 877 mil desempregados, só 380 mil recebiam subsídio.
A conclusão é clara. Há ganhadores e perdedores neste “ajustamento” e a “equidade na austeridade”, tantas vezes invocada, não passa de um álibi demasiadamente tosco. A crise do euro tem sido de facto instrumental para redistribuir poder em Portugal, favorecendo uns e enfraquecendo a posição relativa de outros.
Da “reforma do Estado” feita com notável incompetência às reformas estruturais salvíficas, a consequência tem sido uma: os trabalhadores assalariados da classe média, os funcionários públicos e os pensionistas já regressaram, silenciosamente, ao escudo, enquanto o sector financeiro, os sectores rentistas e as empresas exportadoras mantêm-se no euro, beneficiando dele, ainda que, em certos casos, com dificuldades de acesso ao financiamento. Naturalmente que, para muitos, a crise só pode mesmo ser encarada como uma oportunidade. Aliás, uma oportunidade aguardada há muito tempo.

publicado no Expresso de 27 de Outubro 

Há três anos a queimar dinheiro


Num dos derradeiros artigos que escreveu no Jornal de Negócios, pouco tempo antes de nos abandonar, o economista João Pinto e Castro resumia com precisão a obra política de Vítor Gaspar: “queimar dinheiro na praça pública”.
Em 2012 e 2013, o Governo português retirou da economia 15 mil milhões de euros, através da combinação de um brutal aumento de impostos com cortes na despesa. Os resultados são os que conhecemos: um corte desta ordem de grandeza traduziu-se numa diminuição efetiva do défice de 3 mil milhões de euros. Pelo caminho queimaram-se 12 mil milhões de euros. Talvez esta seja a forma mais clara de revelar o carácter autodestrutivo de doses massivas e descontroladas de austeridade. A receita cai, a despesa com proteção social cresce, a economia colapsa e a dívida e o desemprego não param de subir.
Podemos, sem dificuldade, atualizar o projeto de queima de dinheiro na praça pública iniciado em 2011. Os mais de 5 mil milhões de austeridade de 2013 (que diminuíram para perto de 4 mil milhões por força da decisão economicamente positiva do Tribunal Constitucional) traduziram-se numa consolidação residual. A austeridade de 2013 foi toda perdida para a recessão e o défice que transita para 2014 é, imagine-se, o mesmo que transitou de 2012. Continuou a queimar-se dinheiro a um ritmo assinalável com as consequências económicas e sociais que conhecemos.
Muitos leitores conhecerão um sério aviso epistemológico deixado por Albert Einstein: “não há nada que seja maior evidência de insanidade do que fazer a mesma coisa dia após dia e esperar resultados diferentes”. É esse, no essencial, o objectivo do Orçamento do Estado para 2014. Depois do que aconteceu em 2012 e 2013, o Governo prepara-se para fazer a mesma coisa em 2014 mas espera obter resultados diferentes. Partindo de um défice de 5,8%, o Governo estima reduzir o desequilíbrio orçamental em 2 pontos percentuais, para 4%, com 4 mil milhões de austeridade. Como e porquê? Ninguém sabe. A loucura prossegue, enquanto assistimos ao espantoso exercício que é queimar dinheiro na praça pública para satisfazer os desejos sado-masoquistas dos credores.
O mais provável é estarmos perante uma enorme farsa política. A troika não aceitou rever as metas do défice, como ambicionava a parte irrevogável do Governo, mas o Governo age como se isso tivesse acontecido. A meta do défice será superior à acordada (4%) e, mesmo num cenário otimista, acima da que o próprio Governo quis que fosse a meta revista (4,5%).
Não sei se é a troika que gosta de ser enganada ou se é o Governo que pensa que alguém acredita nesta farsa. Em todo o caso, talvez não fosse má ideia que se ensaiasse uma explicação para justificar este desvario. Até prova em contrário, estamos apenas perante um pretexto – que aliás surgiu no decorrer da 5ª avaliação do memorando – para cortar 5 mil milhões de euros no Estado Social. No fundo, um Governo incompetente mas eficaz naquilo que é o seu verdadeiro propósito.
publicado no Expresso de 18 de Outubro