segunda-feira, março 25, 2013

o que é que vai acontecer?


A ideia de que podemos antecipar o que vai acontecer não é nova. No passado era gerida de uma de duas formas: os homens aceitavam o futuro como uma fatalidade ou com uma ilusão omnipotente de que eram senhores do seu destino.
Com a modernidade, a dicotomia passou a ser gerida com ambição renovada. A invenção da imprensa escrita por Gutenberg, depois a criação dos primeiros sistemas estatísticos e, mais recentemente, a internet e a disponibilização de quantidades de informação sem precedentes, ajudaram a decidir o que fazer com o futuro, na medida em que criaram instrumentos capazes de o antecipar. As previsões são isso mesmo: um cruzamento da subjectividade com a objectividade que torna possível dizer de que forma os mercados financeiros se vão comportar, que tipo de ataques terroristas pode acontecer e quem vai vencer as eleições.
Contudo, como bem sabemos, apesar do crescimento exponencial da informação e da sofisticação dos modelos de análise, as previsões falham muito. Ninguém antecipou o 11 de Setembro, da mesma forma que a actual crise financeira não foi sistematicamente pré-anunciada e, como infelizmente sentimos no nosso dia-a-dia, o Governo português falha todas os cenários macroeconómicos.
Mas, na verdade, há previsões que falham e outras que são bastante certeiras. Por que é que isto acontece?
Nate Silver, em “the signal and the noise”, procura responder à questão com uma autoridade reconhecida. Silver surpreendeu o mundo quando há 4 anos acertou nos resultados de 49 dos 50 Estados norte-americanos nas presidenciais e, em Novembro, voltou a repetir a façanha, acertando, novamente, com um grau de precisão superior ao de todas as sondagens. Contudo, como o próprio reconhece, “adoramos prever coisas, mas não somos muito bons a fazê-lo”.
Para quem construiu uma reputação a acertar previsões, não deixa de ser sintomático que tenha escrito um livro a alertar para a nossa capacidade limitada para antecipar. No fundo, o que Silver sugere é que precisamos de aprender a incorporar a incerteza na forma como prevemos e que o segredo das previsões menos falíveis está no modo como se vão ajustando permanentemente a novas informações.
Para Nate Silver, as previsões falham porque há demasiado ruído (i.e., excesso de informação) que oculta os sinais (i.e., a verdade), ao mesmo tempo que temos uma inclinação para procurar os dados que confirmam os nossos preconceitos. Para lidar com o ruído, Silver sugere uma estratégia baseada na aproximação à verdade.
Devemos começar por estabelecer a probabilidade de alguma coisa acontecer e depois ir alterando os resultados consoante vamos tendo mais informação. Não se trata de uma abordagem puramente empírica, bem pelo contrário, mas, sim, da necessidade de contrariar a tendência para forçar a realidade a conformar-se com os nossos preconceitos ideológicos. Daqui decorre uma recomendação clara: quanto mais disponíveis estivermos para testar as nossas ideias, maior a nossa capacidade para lidar com o ruído, aprender com os erros e saber ler os sinais sobre o que vai acontecer.
publicado no Expresso de 16 de Março 

A maioria silenciosa


Numa cena de “Homens Simples” de Hal Hartley, Martin Donovan estaciona a carrinha e, num ambiente bucólico, grita exasperado: “não aguento o silêncio”. Depois, irrompem as guitarras distorcidas de Kool Thing dos Sonic Youth e logo vemos os protagonistas a ensaiarem uma coreografia em conjunto que, enquanto devolve a memória de “Band à Part”, contrasta com a quietude que causava desconforto ao protagonista do filme. Na ausência de outra possibilidade, o baixo materialismo dos acordes em distorção surgia como resposta a um silêncio e a um vazio insuportáveis.
Tem sido notado que o elemento mais surpreendente da manifestação do passado sábado foi o seu lado quase lúgubre. Durante longos momentos, enquanto desciam a Avenida da Liberdade em Lisboa, milhares de pessoas caminhavam num passo pesaroso, sem o acompanhamento das palavras de ordem que tendem a surgir nestes momentos. O silêncio cinzento parecia ser o espelho exato do sentimento político da manifestação. É dito com frequência que a política tem horror ao vazio. Pode bem ser verdade, mas há momentos em que de facto o vazio político impera.
Há, hoje, uma coligação ampla de rejeição à estratégia política que a Europa tem desenhado para enfrentar a crise e que o Governo português cumpre com desvelado empenho. Contudo, não se vislumbra uma alternativa política que represente maioritariamente o descontentamento e que tenha capacidade de inverter este rumo. De certa forma, o silêncio dos manifestantes é a expressão política do vazio. Se houvesse um horizonte de esperança, corporizado por uma alternativa política, dificilmente teríamos tido manifestações tão desalentadas.
Ainda assim, podíamos esperar uma revolta com algum tipo de expressão mais violenta, mesmo que apenas verbal. De algum modo, a rejeição profunda do estado de coisas combinada com ausência de alternativa visível podia encontrar escape numa espécie de baixo materialismo, um ruído vindo de baixo, como as guitarras distorcidas que se ouvem nos “Homens Simples”. Mas não, o mal-estar difuso, a indignação grisalha, encontrou refúgio num comportamento anómico.
Talvez esse seja um dos aspectos preocupantes da atual situação. Há demasiados sinais do que Durkheim chamou de anomia. No “Suicídio”, para explicar causas não individuais do suicídio, o sociólogo francês destacava o papel dos laços comunitários como factores de integração individual, através de mecanismos de solidariedade orgânica, que contrariavam a tendência para o suicídio como resposta a acontecimentos negativos na vida de um indivíduo. Anomia correspondia, precisamente, a condições nas quais se assistia a uma quebra dos laços sociais entre um indivíduo e a sua comunidade.
Podemos bem estar a viver o início de um longo período onde a inércia social e política podem ganhar força. Faz sentido: estamos a assistir a uma mudança súbita da nossa condição económica, acompanhada por uma descoincidência quer entre os valores sociais e as aspirações individuais, quer entre as proposições políticas e a existência quotidiana dos indivíduos.
 publicado no Expresso de 9 de Março

quinta-feira, março 07, 2013

Comentário ao debate quinzenal na SIC-N




O novo mundo do protesto


Em democracia, as grandes manifestações tendiam a ser organizadas com propósitos claros. Se, por um lado, serviam para expressar o descontentamento social, por outro, eram momentos privilegiados para promover uma nova articulação de interesses que, sendo organizada politicamente, produzia mudança. Não por acaso, as manifestações encontravam intérpretes orgânicos – partidos, sindicatos ou outros movimentos sociais – que, uma vez ultrapassado o momento de contestação de rua, mantinham os factores de protesto na agenda pública, ao mesmo tempo que se batiam pela sua transformação em políticas concretas, conferindo sentido e eficácia aos protestos.
Se o modo verbal que utilizo é o passado é porque me parece que as grandes manifestações de hoje estão já distantes deste padrão. A manifestação que decorrerá em todo o país, tal como a do passado 15 de Setembro, e antes dessa, as grandes manifestações contra o Governo Sócrates, é bem distinta quer das manifestações populares do passado, quer daquelas que, entre nós, a CGTP continua a organizar.
Há naturalmente uma função social que continua a ser desempenhada. Quando as pessoas se manifestam, canalizam o descontentamento e, ao fazê-lo, exorcizam o mal-estar que pressentem individualmente e que encontra eco através da comunhão com milhares de outros manifestantes. Para mais, considerando que a onda de protestos recentes – por exemplo o “grandolar” – encontra acolhimento mesmo entre aqueles que não participam ativamente, as manifestações, por si só, desempenham um papel relevante: consolidam laços de pertença a uma comunidade, que é por definição política.
Contudo, há um conjunto de ilusões associadas a estas novas formas de participação.
A primeira das quais é a ilusão criada pelas redes sociais. O facebook, os blogues e o twitter potenciam formas de expressão política ambicionadas há séculos – não intermediadas, diretas e individualizadas. Mas se estas formas de participação podem ser muito expressivas, não são, no entanto, capazes de funcionar como válvulas de escape para o descontentamento. Pelo contrário, as redes sociais acabam por funcionar como repositórios de tensões e ressentimentos, em lugar de promoverem a sua superação.
Mas, talvez, a maior das ilusões se prenda com o efeito das novas manifestações. Seja nas redes sociais ou, hoje, nas ruas do país, a força dos protestos não se traduz em mudança política efetiva. Não apenas porque há contradições politicamente insuperáveis entre quem se manifesta, mas, no essencial, porque não há (ainda) quem interprete os protestos e quem os traduza num programa político alternativo.
Não nego a importância do protesto baseado na recusa do que existe, mas, sem alguém que o represente organicamente, a sua eficácia é reduzida. Ora o problema é precisamente esse: as formas tradicionais de representação de interesses já não são vistas como representativas, mas ainda não foram encontradas novas formas capazes de organizar a mudança. O que só consolida a natureza radicalmente nova da crise que enfrentamos.
publicado no Expresso de 2 de Março 

Destruir para criar


“É impossível aumentar impostos, desastroso continuar a pedir emprestado, e cortar despesa é simplesmente desadequado”. As palavras podiam ter sido escritas hoje e revelam com precisão os dilemas que Portugal enfrenta. Contudo, fazem parte de um memorando redigido em 1786 por Charles-Alexandre de Calonne, ministro das Finanças de França, dirigido a Luís XVI. Na sequência deste texto, o monarca aceitou convocar uma assembleia de notáveis para discutir um plano de reformas. A assembleia falhou e, por sugestão do Marquês de Lafayette, foram convocados uns estados gerais (os últimos tinham sido em 1614). Como sabemos, bastaram três anos para a degradação financeira, económica e social se traduzir no colapso político do antigo regime.
Se conto este episódio é porque ele é um bom retrato da situação de Portugal hoje – não podemos aumentar impostos, é desastroso continuar a pedir emprestado, os limites para os cortes na despesa já foram ultrapassados e não há apelos aos consensos que nos salvem. Com uma agravante: os dois caminhos dominantes que nos têm sido oferecidos para lidar com o beco sem saída em que nos encontramos têm um lado mimético.
De um lado, estão aqueles que, liderados por Vítor Gaspar, sustentam que a única via para permanecermos no euro é destruir os fundamentos da nossa economia; de outro, os que defendem que a única hipótese é abandonarmos a moeda única, o que se traduziria numa desestruturação da nossa economia no dia seguinte. Em ambos os casos estamos face a uma crença na destruição criativa: a salvação do país tem de passar por um processo prévio de destruição.
Ainda assim, mesmo em contextos assentes no messianismo, a realidade continua a ter muita força e esta semana o mundo de Vítor Gaspar parece ter começado a mudar. O que eram as verdades insofismáveis de ontem deixaram de o ser: o cenário macroeconómico do OE 2013 durou um par de meses; mais tempo já não significa mais dinheiro e a tese da austeridade expansionista, assente no irrealismo mágico, perdeu sentido.
Será esta mudança genuína e suficiente? É duvidoso que quem se move por crenças de natureza messiânica seja convertível pela realidade material. Acima de tudo, o essencial do nosso problema persiste.
Os níveis da dívida pública são insustentáveis e a trajetória atual só pode ser invertida com excedentes orçamentais significativos durante muito tempo. Uma impossibilidade com o que se prevê para a nossa economia e para o conjunto da zona euro, também por força dos pacotes de austeridade que têm sido impostos.
Infelizmente para nós, enquanto acharmos que é possível pagar dívida externa com os recursos que resultam da atividade económica doméstica estamos condenados ao fracasso. A verdade é dura: ou nos batemos por uma renegociação da dívida, que liberte recursos para a dinamização da economia, ou resta-nos escolher entre aqueles que querem destruir a economia hoje para alimentar uma vã esperança de permanecer no euro e os que optam por destrui-la depois de sair do euro. Dois caminhos que podem bem levar ao colapso político.
publicado no Expresso de 23 de Fevereiro