sábado, abril 20, 2013

Reformistas de todo o país, uni-vos


Num pequeno livro de 1974, “Revolução ou Reforma? Uma confrontação”, dava-se conta de um interessante, mas também datado, debate entre Herbert Marcuse e Karl Popper.
De um lado, o neomarxismo crítico de Marcuse que, partindo do carácter repressivo do capitalismo, defendia que a satisfação das verdadeiras necessidades do Homem dependia de uma transformação radical da estrutura da sociedade. Mesmo num contexto de abundância, o sistema vigente, alicerçado em interesses que se autoprotegem, impedia a liberdade. Para Marcuse, enquanto se afigurava difícil definir o aspecto concreto do modelo alternativo, era fácil definir o caminho: uma praxis revolucionária. De outro, Karl Popper para quem a busca de um sociedade utópica era perigosa, entre outras razões, por implicar que se aceitasse sacrificar indivíduos concretos para o Bem de uma Humanidade abstracta. Para o filósofo da ciência, o cepticismo metodológico tinha implicações políticas: a melhor forma de proteger as liberdades era através do reformismo e de instituições que permitissem o debate racional.
Por uma daquelas voltas trágicas do destino, pode bem ser que este debate que se julgava ultrapassado, não seja assim tão datado. Se pensarmos nas clivagens políticas em Portugal hoje, encontramos reminiscências desta confrontação entre ‘revolucionários’ e ‘reformistas’. Com uma diferença. Os revolucionários de hoje não são os esquerdistas do passado, são um grupo bem mais poderoso, desde logo porque governa o país num momento de grande incerteza.
Um dos traços mais marcantes da atitude revolucionária dominante é a forma como vê em todos os obstáculos uma oportunidade. A arquitetura do euro dificulta a capacidade competitiva da economia portuguesa? Pouco importa. A crise da dívida é um pretexto para enveredar pela desvalorização interna, baixando salários. A Constituição defende o princípio da igualdade? Ai é? Então, o chumbo do Tribunal Constitucional é a justificação ideal para desmantelar o Estado social. O caminho para o Governo é claro: de oportunidade em oportunidade até à revolução final.
Há, claro, um lado de profunda irracionalidade nesta estratégia. Só assim se explica a vontade indómita de aplicar, em doses sempre mais reforçadas, uma estratégia de hiperausteridade que manifestamente não funcionou, e esperar resultados diferentes. O espírito é típico do de uma cruzada, uma fé inabalável em amanhãs que cantam. Para os arautos do “capitalismo científico”, pouco importa a destruição social. Um dia, sobre as cinzas do desemprego, emergirá uma nova sociedade. Quando? Ninguém sabe.
Perante o auto-da-fé a que estamos assistir, no qual revanchismo e irracionalidade se combinam, e quando há um consenso muito alargado na sociedade portuguesa, da direita à esquerda, que defende, com razoabilidade, o falhanço da estratégia seguida por este Governo, e acolitada por uma Europa em desvario, talvez seja altura de lançar um apelo patriótico: “reformistas de todo o país, uni-vos” para parar já a deriva revolucionária em curso. 

Uma tenaz narrativa


Há boas razões para preocupações com o espectro de crise política que paira. Não tanto por, como é sugerido pelo Governo – no que não passa de um álibi para a sua própria incapacidade –, poder precipitar um segundo resgate que, ainda que com outro nome, é inevitável, mas por o debate político mostrar que estamos presos, para utilizar um modismo, entre duas narrativas desligadas da realidade da crise que enfrentamos e que, por isso, não oferecem soluções viáveis.
Neste sentido, o debate da moção de censura foi dramático, no essencial, pelo seu efeito de revelação. Enquanto a maioria, pela voz de Vítor Gaspar, assenta a sua estratégia numa leitura das razões por que Portugal foi resgatado que ignora aspectos determinantes; o PS, por se ter autoinibido de falar do passado, é, hoje, incapaz de se demarcar da interpretação da crise feita pelo Governo, logo de oferecer um caminho alternativo.
Não por acaso, durante o debate, as intervenções mais programáticas ignoraram as condições da nossa participação no euro e a insustentabilidade dos níveis atuais de endividamento. Um discurso político que secundariza estas dimensões não tem, literalmente, futuro histórico.
Gaspar expôs com particular clareza o que move a sua estratégia. Há dois anos, Portugal precisou de ser resgatado por acumular um conjunto de défices estruturais (identificados por Olivier Blanchard num conhecido artigo de 2006), aos quais os Governos não responderam desde a adesão ao euro (a tese da “década perdida”), e que se tornaram particularmente visíveis quando em 2009 foi adotada uma estratégia orçamental “despesista”. No fundo, a crise foi virtuosa, pois, ao expor as nossas debilidades, criou uma oportunidade única para as resolver.
Este argumento tem vários problemas. À cabeça, o facto da estratégia revolucionária em curso estar a ser um descalabro económico, orçamental e também da dívida. Não menos relevante, ignora os constrangimentos objectivos que a moeda única colocou à economia portuguesa – a razão para os crescimentos medíocres desde a adesão à UEM – e, particularmente assustador, passa ao lado da crise da dívida soberana e, inclusivamente, da leitura que Blanchard, agora economista-chefe do FMI, hoje faz.
Que o Governo ensaie este discurso como tentativa espúria de ocultar os seus falhanços não surpreende. O que surpreende é a timidez do PS perante esta narrativa: não contraria a tese da “década perdida”, incorpora o argumento do despesismo – que, aliás, não está refletido no défice de 2009, causado por um desvio na receita – e abdica de fazer uma reflexão retrospectiva em torno das armadilhas da moeda única.
Estamos perante um verdadeiro pecado original: o PS ou tem algum rasgo estratégico ou não será capaz de articular uma alternativa política com futuro. Por mais medidas importantes que apresente (v.g., reembolso dos lucros do BCE com a compra de dívida soberana), se não romper com esta tenaz narrativa, estará condenado a ter como programa, num contexto radicalmente diferente do de 2005, uma versão light do choque tecnológico.
publicado no Expresso de 6 de Abril

Comentário ao debate quinzenal




terça-feira, abril 09, 2013

Porque é que não te calas?


Há uns tempos, Vítor Gaspar deixou de ser apresentado como um técnico muito capaz para passar a ser um ministro incompetente. Do mesmo modo, esta semana, quando o Presidente do Eurogrupo, um holandês de nome impronunciável, Dijsselbloem, disse que a solução final para o Chipre podia ser aplicada em resgates de sistemas bancários de outros países, muitos se apressaram a classificar a declaração como um dislate de alguém com poucas competências políticas. Infelizmente, o problema de Gaspar, bem como o de Dijsselbloem, não é de incompetência técnica ou comunicacional. Antes assim fosse. A questão é política e ambos são, aliás, muito competentes na concretização da estratégia em que estão empenhados.
No essencial, esta estratégia assenta numa leitura da natureza da crise que procura iludir os interesses conflituais em jogo. A questão é de poder, logo política, e é-nos apresentada como sendo moral.
Quando a luta na Europa aquece, o tema da culpa reemerge com particular intensidade como mecanismo de ocultação das relações de poder. Não por acaso, o ministro alemão Schauble, em mais uma declaração reveladora, aproveitou por explicar as críticas à Alemanha como sendo feitas por “maus alunos”, os preguiçosos do Sul, invejosos dos “bons alunos”, os trabalhadores incansáveis do Norte. Ora esta visão, ao mesmo tempo pueril e eficaz, serve para disfarçar um conjunto de respostas à crise que visa servir os interesses dos credores (não nos iludamos, é essa a medida da eficácia para Vítor Gaspar) e reproduzir uma estrutura de poder na qual há beneficiários objectivos (à cabeça a Alemanha) e também perdedores objectivos (os países da periferia).
O primeiro acto da tragédia cipriota, que apenas agora se iniciou, encerra também uma questão de poder, com risco de contágio. No meio da insanidade que se apoderou do Eurogrupo, é possível discernir um conjunto de objectivos. É disso exemplo a arrogância de impor uma transformação do sistema económico do Chipre. O que o Eurogrupo em última análise diz é que Frankfurt, Londres e Paris podem ter centros financeiros fortes, mas Nicósia, Luxemburgo e Valletta não.
Enquanto a economia de Chipre é desmantelada, obrigando o país a reconverter-se economicamente, num contexto adverso, quem sabe regressando a uma base agrícola, com o decretado fim da circulação de capitais, de facto, já temos duas zonas euro. Resta saber quantos países se terão de juntar à união monetária com o Chipre.
Não admira que a Alemanha defenda os seus interesses, o que espanta é que os países da periferia interiorizem a culpa moral pela crise, que busquem expiá-la, aceitando sistematicamente o empobrecimento como solução, e que nas reuniões europeias ninguém se insurja contra o que é dito e feito. O que surpreende nas últimas semanas não são tanto as decisões tomadas, é a atitude colaboracionista de quem é objectivamente prejudicado. Não admira que Schauble ou Dijsselbloem digam o que pensam. O que choca é que ministros do Governo português presentes nestas reuniões não tenham a coragem patriótica para dizer: “porque é que não te calas?”
publicado no Expresso de 29 de Março

sábado, abril 06, 2013

Comentário à saída de Miguel Relvas no Primeiro Jornal da SIC




quinta-feira, abril 04, 2013

Comentário debate moção censura na SIC-N




segunda-feira, abril 01, 2013

Necessidade, oportunidade e risco


A decisão do PS de apresentar uma moção de censura é um espelho dos dilemas que enfrentam os socialistas. O PS podia não apresentar uma moção de censura? Não, não podia. O PS corre riscos ao apresentar uma moção de censura? Sim e pode mesmo encaminhar-se para um beco político.
A apresentação de uma moção de censura é, antes de mais, uma necessidade. Não apenas porque estamos confrontados com um governo totalmente desorientado, acossado por uma execução orçamental negativa, por um desemprego imparável e pela incapacidade de cumprir os objectivos que traçou para si próprio (à cabeça, os cortes de quatro mil milhões de euros), mas, também, porque o PS não pode deixar de corporizar o descontentamento social que se sente na sociedade portuguesa, sob pena de se tornar irremediavelmente irrelevante.
Mas trata-se também de uma oportunidade. Tendo em conta que se antecipa que o Tribunal Constitucional declarará inconstitucionais um conjunto de normas do orçamento, o que obrigará o Governo a um esforço adicional de cortes já neste ano, e que há claros indícios de que o primeiro-ministro pode bem procurar fazer do acórdão o álibi de que necessita para justificar a sua própria incapacidade política, é natural que o PS queira, ao mesmo tempo, antecipar-se e liderar uma crise política que se agudizará rapidamente. O raciocínio é claro: à estocada quase letal que será um orçamento de novo declarado inconstitucional, juntar-se-á uma inédita moção de censura do PS, que procurará ser a estocada final.
Contudo, os problemas que resultam da apresentação de uma moção de censura pelos socialistas não são poucos.
Desde logo, o PS é um partido de governo e não um partido de protesto, que apresenta moções de censura todas as sessões legislativas. Não por acaso, cumprem-se agora dez anos desde a apresentação da última, que teve como pretexto uma ruptura política sem paralelo na história da democracia portuguesa – a opção do Governo Barroso de apoiar a invasão do Iraque. É evidente que estamos perante uma situação dramática e que requer uma ruptura política. No entanto, o PS só pode apresentar uma moção de censura se tiver uma alternativa política e programática para apresentar e, não menos importante, se for percepcionado pelos portugueses como sendo uma alternativa. Ora, nenhuma destas condições está reunida.
Politicamente, ou o PS tem uma maioria absoluta (cenário que parece ser inviável) ou, mantendo-se um partido incoligável, não oferece nenhuma solução governativa estável e, programaticamente, enquanto não colocar em cima da mesa a renegociação da dívida e a discussão dos termos da nossa participação no euro, não terá possibilidade de formar um programa de governo alternativo.
É por isso que esta moção de censura, sendo uma necessidade, não só demonstra as dificuldades que o PS enfrenta como, mais relevante, revela o impasse político para o qual nos dirigimos – aliás, a um ritmo imparável.

publicado no Expresso de 23 de Março

Uma oportunidade perdida


Em menos de dois anos, desabituámo-nos de ter um primeiro-ministro capaz de explicar e de se explicar. O regresso de José Sócrates, independentemente do que possamos pensar sobre o que diz, revela a importância política da forma como se diz.
A clareza favorece também a interpretação do que Sócrates quis que esta entrevista fosse. Na ausência de alguém que contrariasse uma “narrativa” hegemónica, Sócrates optou por ser ele a fazê-lo, formatando o debate público através de uma revisitação do início de 2011. Uma hora e meia de entrevista resultou num ajuste de contas com o papel do Presidente e da atual maioria na precipitação de uma crise que, inviabilizando o PEC IV, levou ao pedido de resgate. Com um corolário lógico: Cavaco Silva está intimamente ligado à solução política que temos hoje.
Esta foi a entrevista que Sócrates quis dar. Mas tratou-se de uma oportunidade perdida para dar uma outra entrevista, incomparavelmente mais relevante. Uma entrevista que contrariasse a tese da década perdida no ajustamento de Portugal ao euro, sublinhando o modo como os seus Governos combateram os vários défices que diminuem a nossa competitividade – das qualificações aos custos de contexto, passando pelo orçamental. Défices estruturais e bem mais estratégicos que a sucessão de episódios mesquinhos que ocorreram entre 2009 e 2011.
Um ex-primeiro-ministro tem o direito de se defender de ataques soezes? Sim. Mas não terá também o dever de contribuir para ultrapassar a situação de bloqueio em que o país se encontra? Se assim é, qual foi o contributo desta entrevista?
comentário à entrevista de José Sócrates publicado no Expresso de 29 de Março